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Jornal Olho nu - edição N°227 - Outubro de 2019 - Ano XX

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Dora Atemporal: Vida, Arte, Verdade Nua...

 

Paulo Pereira
Setembro/2019
 

Por ocasião do centenário de nascimento de Dora Vivacqua, a extraordinária Luz del Fuego, em fevereiro de 2017, escrevi um modesto artigo intitulado “Dora Vivacqua, Luz Centenária”, publicado pelo Jornal Olho Nu, no qual afirmo: “ F. Nietzsche, e Dora Vivacqua foi um exemplo disso, defendia que é preciso dar voz ao próprio corpo, à vida, aos instintos, aos desejos... E a sabedoria da saudosa Luz del Fuego fez com que ela vivesse intensamente essa percepção, esse olhar pleno de vida. E Luz del Fuego fez muito mais: uniu o corpo à arte, sempre pioneira, antecipando, na prática, o pensamento iluminado de Ferreira Gullar: a arte existe porque a vida não basta...
 

Como diz o velho dicionário, a arte é a habilidade humana de por em prática uma ideia. Então, vida e arte, de forma integrada, buscam certamente transcender limites, sempre valorizando os enriquecimentos substantivos, a evolução qualificada, a eternidade pela contínua impermanência, enfim a matéria redimensionada como luz atemporal, como energia livre. Esse cenário, que se faz grandioso, anotemos com atenção, rejeita de pronto a pequenez dos olhares superficiais, e facilita nosso entendimento de que vida e arte amalgamadas, por certo imorais, como são as almas no dizer de Nilton Bonder, transformam-se em brilhos independentes da dimensão do tempo. É dentro desse enfoque precioso que volto a considerar o meu artigo relativo ao centenários de Dora, de Luz del Fuego, em testemunho e em reconhecimento. Diferentemente de alguns ilustres autores, que trataram da vida e da obra de Luz del Fuego, eu tenho vivido, e destaco, o privilégio de ter conhecido Luz pessoalmente, de ter conversado longamente com ela, de ter aprendido muito com sua visão especial de vida, e com sua sabedoria apaixonante, fato que me faz ser mais cuidadoso, sereno e determinado, evitando os meros clichês, as cômodas superficialidades.
 

Capa da primeira edição do livro "A Bailarina do Povo", em 1994

Luz del Fuego, enfatizo, não é simplesmente uma lenda, um mito, muito menos uma utopia, mas definitivamente uma inquietante realidade histórica, uma referência datada, registrada igualmente no âmbito internacional. Em maio de 1994, ressalto o acontecimento, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, a escritora Cristina Agostinho lançou seu livro chamado “Luz del Fuego, A Bailarina do Povo”, Editora Best Seller, e escreveu na dedicatória para mim: “Para o Paulo matar um pouco a saudade”... Mas essa saudade, repito, parece mesmo não ter cura, sobretudo, porque a saudade se fez amor maior, transcendente. Mas a falta de Luz é imensa, especialmente quando me sinto meio cercado pela mediocridade reinante, que, revisionista e insana, tenta reviver obscurantismos, pudores medievais, anacronismos descabidos, narrativas usurpadoras, filosofias anticientíficas, até um naturismo sem nudismo, um naturismo ideológico, intelectualmente vesgo, míope...
 

A edição de 1994 do livro de Cristina Agostinho foi sucintamente analisada por mim em artigo publicado pelo Jornal Olho Nu, número 217, dezembro de 2018. É oportuno sublinhar, de passagem, que Dora Vivacqua, a famosa Luz del Fuego, não foi especialmente uma bailarina popular, como Cristina reconhece, mas, afinal, uma mulher incomum, um ser humano adiante de seu tempo, uma pioneira inconteste, uma ativista destacada, uma humanista lúcida, verdade que incomodava demais muita gente poderosa. Incomodava tanto que mataram brutalmente a grande combatente, na tentativa doentia, e fracassada, de eliminar seu legado histórico nobre, sua mensagem grandiosa de vida, um assassinato cultural, como bem observam Aguinaldo Silva e Joaquim Vaz, uma violência que não deve ser esquecida ou menosprezada. A morte trágica de Luz del Fuego exige uma leitura isenta, respaldada pelo conhecimento histórico, científico, tarefa hoje favorecida pela perspectiva do tempo, por uma nitidez menos emocionada do que em 1967.

 

Img: Pedro Ribeiro

Cristina Agostinho, autora do livro "Luz del Fuego - A Bailarina do Povo" em fetsa de lançamento da segunda edição em maio de 2018

A segunda edição do livro de Cristina, N-30 Editorial, tem a apresentação de Henrique Oswaldo Vivacqua Campos, sobrinho de Dora, e merece registro: “Quando se falar em liberdade artística, em coragem de quebrar grilhões do conservadorismo ultrapassado, a referência à Luz del Fuego se impõe como pioneira, precursora que foi do feminismo, do ambientalismo, e do naturalismo (naturismo) no Brasil, e no mundo de seu tempo, e por sua posição de vanguarda no sonho também de liberdade política. O livro, publicado no centenário de uma mulher de talento e coragem, resgata das sombras do preconceito e do esquecimento a história de um ser humano excepcional”... Considero essencial salientar a importância de resgatar um ser humano excepcional das sombras do preconceito e do esquecimento proposital, cultural, notadamente quando uma plêiade de sacripantas insones fabrica disparates. O prefácio da segunda edição nos diz: “Entre os anos de 1940 e 1967, o Brasil viu surgir, se consolidar, e ser exterminada uma artista modernista, uma pesquisadora da dança e do corpo, que construiu uma proposta existencialista para viver numa sociedade com menos perversões, uma escritora contundente, que publicou, de modo autônomo, duas obras hoje raras, “Trágico Blackout” (1947) e “A Verdade Nua” (1950), e uma inovadora ativista política em defesa dos direitos das mulheres, dos artistas e dos animais”... O pioneirismo de Luz del Fuego, incontestável e plural, deve servir de exemplo para todos os amigos da paz, da natureza indomável e da liberdade sem medos. Viver à luz das verdades não é tarefa para aventureiros afoitos, para especialistas de generalidade ou para engenheiros de obras feitas... A vida e a obra de Luz del Fuego não pertencem a nenhuma “pré-história” nem são rastros fracos, ou perdidos, dos “primórdios naturistas”, expressões descabidas proferidas por algumas bocas infelizes, difamatórias, hoje sabidamente desacreditadas. Luz del Fuego tem reconhecimento histórico internacional!
 

No meu artigo de fevereiro de 2017, fiz referência ao rico pensador Khalil Gibran, que salientou que é mister buscar a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós... E Dora sempre cultivou a preciosa liberdade da solidão e a segurança de não ser totalmente compreendida, percebida, invadida, dominada. Os caminhos trilhados por Dora são exigentes, definitivos e dispensam julgamentos subjetivos. O legado de Luz del Fuego não pode estar sujeito aos palpites interessados da grande turba fragmentária, reacionária.
 

Faço uma leitura direta, sem disfarces, da morte de Luz del Fuego, sublinhando fortemente uma percepção mais fina, e não tenho dúvida de afirmar que o assassinato de Dora Vivacqua tem claras conotações direcionadas. Havia, nas décadas dos anos 1950 e 1960, e ainda há agora, indivíduos e grupos interessados em destruir, em negativar a vida e a mensagem de Luz, até porque persistem inúmeras colocações que menosprezam e denigrem a figura histórica, e humanista, de Dora, de Luz del Fuego, sobretudo, porque ela era, e ainda é, um incômodo efetivo para as intenções marginais de inúmeros escribas, que tentam reduzir o legado, e a rica dimensão, de Dora ao nível do inessencial, e a tudo que é dito pecaminoso, impuro. Os agentes perversos da pós-verdade procuram concretamente marginalizar Luz del Fuego, edificando sofismas, estórias delirantes, uma vasta ação orquestrada, vesga, que denuncio veementemente em defesa da História, da integridade dos fatos.
 

Eu estive pessoalmente com Luz del Fuego um bom tempo antes de sua morte brutal, e pude produzir e organizar várias matérias, textos e fotografias, que foram enviados à revista alemã “Freies Leben”, e publicados, inclusive, em 1966, na edição nº 127 da revista, sob o título de “Sudamerika”. Minhas visitas à Ilha do Sol (Tapuama) constituem para mim uma referência valiosa, uma grande aula de sabedoria de vida. O regime militar havia começado em 1964, moldando um ambiente complexo em desacordo com o pensamento libertário, com a ideia do nu natural, com o culto consciente da liberdade plena. Mas Luz del Fuego manteve-se fiel à verdade nua, surpreendendo-me com sua naturalidade, com sua simplicidade nobre e contagiante, com sua polidez, com sua visão serena e culta do mundo, e com seu despojamento de corpo e alma. Dora respondeu com franqueza e objetividade todas as perguntas que fiz a ela como correspondente de “Freies Leben”, fazendo nascer um entendimento, uma ansiedade fraterna, profunda, que se faz perene, atemporal. Luz del Fuego salientou, então, que, especialmente a partir de 1964, em face da revolução, havia uma forte carência de investidores, que pudessem colaborar na conservação e expansão das acomodações da Ilha do Sol, certamente porque a maioria não queria investir num cenário de incertezas e de medos. Luz ressaltava sempre que sentia forte tristeza diante da indiferença da sociedade vestida, opressora, sobretudo, em face das intolerâncias e hostilidades em relação ao direito de viver livremente, à natureza, aos animais desamparados, aos seres humanos perseguidos por sua etnia, por sua orientação sexual.
 

Luz del Fuego sempre viveu longe da vulgaridade, mas por sua alma transgressora muitas vezes foi vítima de incompreensões e difamações. Luciano Canabrava, mencionado por mim em outro texto, fez-se amigo eventual de Luz, um cidadão do mundo, aventureiro, criativo, interessado no cultivo das ostras, mas acabou também assassinado, uma inquietante coincidência. Amar a liberdade da solidão consentida é positivamente descortinar as fronteiras do paraíso das verdades e das transcendências, mas não podemos ignorar os sérios riscos assumidos, e os pedágios que devem ser pagos.
 

Luz del Fuego, como registrei em 2017, visitou-me de surpresa em minha casa, uma demonstração de apreço pessoal, especial, de amizade fraterna que desconhece idades, de afinidade espiritual acima de tudo. A figura doce, e forte, de Luz del Fuego, com sua longa trança e uma rosa vermelha nos cabelos, de fala meiga, tornou-se inesquecível para mim. A visita de Luz, e seu carinho respeitoso por mim, são um marco poderoso de um encontro diferenciado com a nativa solitária, exigindo de mim gratidão, e fazendo-me acreditar que a vida não é um acaso inconsequente, mas uma oportunidade misteriosa de evoluir, de construir eternidades.
 

Depois da morte violenta de Dora, alguns deslumbrados, escravos da mediocridade, tentaram apagar sua mensagem humanista, até mesmo falando em “diáspora”, e em “pré-história”, em relação ao Nudismo-Naturismo, e difamando Luz como libertina, como devassa, um melancólico vomitar de asneiras, e de falsos pudores, que serve para definir esses oportunistas baratos como tolos iconoclastas, como usurpadores amadoristas, como inimigos da história e da natureza, um contraponto rude da verdade nua. Ao longo dos anos, alguns escribas festejados insinuaram, e até propagaram, meias-verdades, grandes mentiras, sobre Luz del Fuego, falando em atitudes exibicionistas, e interesseiras, assumidas por Dora, mas desconhecendo, ou esquecendo, que algumas concessões feitas por ela visavam apenas chamar a atenção do púbico geral, e adquirir meios práticos, financeiros, de realizar seus projetos na Ilha do Sol, por exemplo. Os fundamentos nudistas-naturistas defendidos, e publicados, por Dora, estão rigorosamente de acordo com os preceitos, e conceitos, clássicos do Movimento, desde Ungewitter, e oficializados pela INF – Federação Naturista Internacional, de fato. Só haveria qualquer choque, ou desencontro, precisamente com as colocações extemporâneas de alguns escribas afoitos, de alguns teóricos disparatados, que inventam uma antinomia entre “nudismo” e “naturismo”, ou tentam promover versões ideológicas, ou religiosas, da filosofia naturista histórica.

 

O livro “Luz del Fuego”, de Aguinaldo Silva e Joaquim Vaz de Carvalho, 1982, Editora Codecri, é uma obra bem concebida, preocupada com o culto da verdade histórica, que projeta luz clara sobre o assassinato cultural de Dora, e merece consideração especial. No capítulo segundo, página 14, está escrito: “O retorno de Luz del Fuego aos palcos, em 1965, tinha um único objetivo, como ela explicou em meio às lágrimas ao travesti Eloína, seu mais recente amigo, a caminho da Praça XV, na noite de estreia: precisava de dinheiro. Não para si, que lhe bastava o mínimo, mas para tentar, antes que fosse finalmente vencida pelos anos, concretizar seu sonho: estabelecer definitivamente o Clube Naturalista, dar a ele instalações condignas na Ilha do Sol, que lhe fora doada no meio da Baía da Guanabara e, principalmente atrair novos adeptos para um culto, que julgava decadente: o do corpo”... É indispensável não inventar, não prestigiar meras subjetividades, e apenas proclamar a verdade dos fatos, como faz o texto citado. Luz del Fuego não é mito exótico, mas um ser humano diferenciado, um grito de liberdade sem véus.
 

Luz del Fuego, em suas francas conversas comigo, sempre foi uma consciência superior à média, sempre foi impessoal, determinada, uma voz a serviço da vida sem máscaras, sem desculpas, sem culpas, sem mentiras. Luz gostava de estar só, em silêncio, sem vestes, em comunhão com as forças da natureza, meditando, lendo textos qualificados, quase sempre na companhia de seus cães, de sua cabra, de suas cobras sem veneno, o corpo, queimado pelo sol, acariciado pelo vento do mar, até pelas gotas frias da chuva mansa. Luz del Fuego se bastava, indiferente aos resmungos dos idiotas, dos pudicos, dos hipócritas, dos toscos.
 

Img:Arquivo governo ES

Luz del Fuego treinando com as cobras

Mataram Luz del Fuego, mataram Gandhi, mataram Jesus, certamente querendo silenciar a verdade, mas os assassinos esqueceram que a verdade é luz perene, que não pode ser aprisionada ou morta. Luz del Fuego foi morta covardemente nas águas da Ilha do Sol, em 1967, às vésperas do Ato Institucional de 1968, um ano que nunca terminou, segundo vários autores. A quem interessa de fato ignorar o processo histórico-filosófico, desde 1948/49, do Naturismo do Brasil? Luz del Fuego não morreu por nada. A verdade nua não sabe morrer!...
 

Luz del Fuego, enfatizemos, não foi vítima de um mero feminicídio, mas de um assassinato cultural. Luz colocou-se por inteiro como alternativa, como exemplo de um viver natural, um viver descomplicado, mais simples, sem fobias ou falsos pudores, sem ganância, sem intolerâncias. Os que tem aversão sistemática pelos contraditórios respaldados sentem-se ameaçados por Luz e sua obra, seu legado inconteste. Até quando?...
 

Um dia, numa das muitas visitas à Ilha do Sol, Dora me chamou gentilmente de “alemãozinho”, o bom amigo da revista “Freies Leben”. E, desde então, tornei-me efetivamente irmão especial da nativa solitária, um privilégio arrebatador, uma experiência superlativa, inquietante. A fraterna amizade com Dora, a Luz del Fuego, é chama de brilho infinito, uma energia incontida, sem fronteiras, uma verdade nua, repito, que não sabe morrer.
 

Parafraseando o inesquecível Mário Quintana, eu diria, sem medo de errar, que Luz del Fuego vivia cada minuto como uma nuvem do céu, isto é: sem amarras, acima do comum dos mortais, e movida livremente pelos ventos da esperança e da sabedoria.
 

Paulo Pereira é biólogo, jornalista, naturista do movimento precursor do Brasil, já foi presidente da Fraternidade Naturista e da RioNAT, atual membro do Conselho Consultivo da FBrN.

 

(enviado em 1/09/19 por Paulo Pereira)


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