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Jornal Olho nu - edição N°195 - Fevereiro de 2017 - Ano XVII

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Dora Vivacqua: Luz Centenária

(1917-2017)

 

Paulo Pereira

 

O notável escritor Khalil Gibran nos falou das máscaras que costumamos usar durante nossas vidas e, sobretudo, da grande importância de nos livrarmos dessas nossas máscaras. O pensador oriental salientou que é mister buscar a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós... Ouso dizer, então, que Dora Vivacqua, a inesquecível Luz del Fuego, teve a sabedoria e a coragem de retirar, de recusar todas as máscaras e de viver intensamente a liberdade da solidão, a Verdade Nua! Dora aprendeu a nadar contra a correnteza conservadora, desafiando hábitos e postulados enraizados na sociedade burguesa, transformando-se, afinal, num ser humano fora da jurisdição comum do mundo, uma pioneira que fascinava e inquietava muita gente. Dora valorizava o corpo como nossa identidade natural, inclusive como invólucro do espírito. Ela ressaltava a importância de um olhar perceptivo em relação à nudez, ao corpo.

 

Leandro Cardim, falando de F. Nietzsche, nos diz que é importante “suspeitar da representação clássica do corpo, da tradição que nos acostumou a aceitar o modelo objetivado sob o olhar do espírito, considerado o todo-poderoso”... Nietzsche, e Dora foi um exemplo disso, defendia que é preciso dar voz ao próprio corpo, à vida, aos instintos, aos desejos...

 

A saudosa Luz del Fuego viveu intensamente esse olhar pleno de vida. E fez mais: uniu o corpo à arte, pioneira, antecipando, na prática, a sabedoria de Ferreira Gullar: “A arte existe porque a vida não basta”!

 

Sublinhando, pois, as melhores referências, visando sempre ao bom entendimento, é oportuno recordar algumas palavras escritas por Luz del Fuego na apresentação oficial da primeira revista nudista-naturista ilustrada do Brasil, em 1950. No lançamento de “Naturalismo”, está escrito: “A hipocrisia e o preconceito, por conveniências e interesses, adoeceram o corpo e a alma da humanidade... Sem o véu da fantasia, a nudez se revigora à luz solar, vencendo os males que ofendem a saúde e comprometem o corpo; nascemos nus e nus vivem os índios no mais afervorado respeito a seus preceitos de moral... Em países cultos, como os Estados Unidos, a Alemanha, a Noruega e a França, existem centros naturalistas (nudistas-naturistas) a que chamam de Colônias de Nudismo, onde a vida ao ar livre oferece benefícios excelentes à saúde. Sou a pioneira de um desses núcleos no Brasil, não obstante a malícia e a incompreensão de alguns. Criei também o Partido Naturalista Brasileiro (1949), que hoje representa uma força política prestigiosa”. Isso é História com maiúscula! O pioneirismo de Dora Vivacqua, a Luz del Fuego, exige respeito.

 

Nesse momento histórico, quando celebramos fraternalmente o centenário de nascimento de Dora, anotemos mais algumas poucas palavras escritas por ela, em 1950: “Em 1948, foi fundado o Movimento Naturista Brasileiro. O princípio fundamental do Nudismo Brasileiro é “uma mente sã num corpo sadio”. O sol, a luz e o ar são os indicadores do novo caminho de vida... Estamos convencidos de que o nudismo representa a vida essencialmente pura”. Em 1950, pensar, escrever e, sobretudo, assumir todas essas ideias ou princípios, convenhamos, não era tarefa fácil. Dora, desde cedo, ousou propor caminhos libertários, o que incomodava seriamente muita gente arrumadinha.

 

Em maio de 1994, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Cristina Agostinho, Bianca de Paula e Maria do Carmo Brandão fizeram o lançamento oficial do livro “Luz del Fuego, A Bailarina do Povo”, Editora Best Seller e Círculo do Livro. Na dedicatória da obra para mim, Paulo Pereira, enfatizo, Cristina escreveu “Para Paulo matar um pouco da saudade. Com um abraço da Cristina”. Mas essa saudade, danada de grande e de caprichosa, só fez crescer com o passar dos anos, talvez porque as energias preciosas não morrem, sofisticam-se, viram parte da gente... E Cristina Agostinho cita, explícita, a pioneira Luz del Fuego: “Contra a realidade social, vestida e opressora, sem loucura, sem prostituição, sem penitenciárias, fundei o Partido Naturalista Brasileiro... Menos roupa e mais pão! Nosso lema é ação!”... E, nas páginas finais do referido livro, há uma bela série de ilustrações e de fotos históricas, que atestam, de forma direta e inconteste, o pioneirismo de Luz del Fuego, que reafirmamos aqui e agora.

 

O nome de Dora Vivacqua, de Luz del Fuego, mereceu, ao longo do tempo, enorme quantidade de registros na imprensa, nacional e mundial, além de várias edições de muitos livros de referência. Além de “Corpos Nus”, modestamente, faço várias anotações e comentários em “Sem Pedir Julgamentos”, 2011, onde ressalto a inclusão do nome de Dora, de Luz del Fuego, no consagrado “Dicionário das Mulheres do Brasil”, Zahar Editores, página 347, o que configura importância indiscutível.

 

Em síntese, considero a obra “Luz del Fuego” de Aguinaldo Silva e Joaquim Vaz de Carvalho, 1982, o texto mais rico e denso, embora resumido, a respeito da personalidade, da vida e da obra de Luz del Fuego, lançamento da Editora Codecri e Morena Produtores de Arte. Os autores da obra vão diretamente ao foco, à questão da imagem multifacetada de Luz, sobretudo, como humanista, feminista, nudista, apaixonada pela natureza e amiga dos diferentes e dos animais desvalidos. De fato, logo no primeiro capítulo, são feitas importantes colocações sobre a opressão à mulher dentro do processo autoritário brasileiro. Os autores, lúcidos, perguntam: “Alguém falou em assassinatos culturais? A verdade é que essas mulheres foram mortas várias vezes em vida, acusadas, ofendidas e humilhadas, atacadas sem trégua por sua coragem, submetidas a um processo de violência constante dentro do qual são mortas, ainda que acidentalmente, como Maysa e Leila, apenas uma espécie de clímax dramático”...

 

Os autores, pois, de forma direta, admitem claramente que a morte trágica de Luz del Fuego tem um significado gritante de extermínio cultural, de queima de arquivo incômodo. Como nos diz Aguinaldo Silva, Dora gostava da vida, da liberdade, de cobras e de andar nua, por exemplo. E pagou um preço por tudo isso. Em 19 de julho de 1967, curiosamente às vésperas de novo mergulho do país no terror e no obscurantismo, como ressaltam os autores do referido livro, Luz é brutalmente assassinada, uma nudista, uma feminista, uma amiga da natureza livre e da paz... Aguinaldo Silva enfatiza fortemente o processo de amesquinhamento que Luz enfrentou em vida, o que acabou por reduzir, num primeiro olhar, sua morte, seu assassinato cultural, a um mero caso de polícia... O pensamento nu, como tenho afirmado, incomodava os fariseus de todos os matizes. Muitos afoitos, de forma eventualmente dissimulada, alimentam a tentativa descabida de destruir a imagem libertária e pioneira de Luz del Fuego, mas não encontram eco na verdade, na história, na consciência nobre dos homens de bem.

 

É indispensável, na atual conjuntura sociocultural, considerar atentamente a existência de uma certa superficialidade reinante, em prejuízo do real saber, do conhecimento. Há um excesso de subjetividades. Talvez por isso mesmo, em 2016, o conceituado Oxford elegeu o verbete “pós-verdade” como o destaque do ano... Muita gente tenta distorcer os fatos, e busca substituir a história por simples narrativas fantasiosas ou convenientes, a emoção e a criatividade oportunista em lugar da razão, do respeito aos fatos, ao conhecimento científico, por exemplo. Vivemos um tempo de “pós-verdade”, pleno de casuísmos e de adaptações simplórias, interessadas. Mas a verdade histórica deve se impor, sempre. A meia-verdade e a “pós-verdade” são grandes falácias, grandes mentiras. O legado de Luz del Fuego pede uma leitura consciente, serena, histórica.

 

Dora Vivacqua é o nome lembrado no centenário de seu nascimento porque é uma luz preciosa que não se apaga. Luz del Fuego é um grito de liberdade. “Criatura louca e generosa, agridoce, grosseira e suave, inesquecível na sua verdade”, como nos disse o meu saudoso amigo e colega David E. Neves, cineasta, diretor do filme “Luz de Fuego” protagonizado por Lucélia Santos.

 

Hoje, nesse momento significativo dos cem anos de Luz, emocionado, lembro da amiga Dora, até como foi citada por Dom Marcos Barbosa, do Mosteiro de São Bento, em 1967, Membro da Academia Brasileira de Letras, no programa “Encontro Marcado”, na antiga rádio Jornal do Brasil, isto é, como uma sonhadora acordada, como uma centelha viva, ainda que meio utópica, a nativa solitária de Paquetá... E, então, faço publicamente uma pequena e doce inconfidência, uma revelação: recebi, em minha residência, há anos, de surpresa, a visita ilustre e fraterna de Dora, de Luz, com sua simplicidade cativante, franciscana, com seu ar de morena nativa, a longa trança e a pequena rosa vermelha a ressaltar a beleza de seus cabelos negros, uma figura feita de espontaneidade e meiguice... Dora fez breves comentários sobre a solidão humana e sobre a dimensão insondável da natureza. Mas, na verdade, Dora comunicou-se comigo também sem falar, pois, quando as mentes e almas se entendem, as palavras se tornam desnecessárias, e emudecem... O “alemãozinho”, como Dora me chamava, agradece a consideração da mestra humanista.

 

Fica, então, em mim, Paulo, a certeza de um viver maior. Luz del Fuego vive! Ela vive nas mentes e corações livres, no respeito atencioso ao diferente, na lembrança dos que souberam conviver com ela, na coragem do despojamento integral de corpo e alma, no olhar sem pecados, nos anais das lutas e filosofias libertárias e até, magia e brilho, nas lendas da ribalta.

 

(enviado em 3/01/17 por Paulo Pereira)


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