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Jornal Olho nu - edição N°177 - Agosto de 2015 - Ano XVI

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Teologia da nudez, por um nudista.

(Terceira parte)

 

por Arthur Virmond de Lacerda Neto*

6.XII.2014

 

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Origem do gimnofobia.[1]    

Resurreição de Cristo de Edward Knippers.òleo sobre madeira. 2007

A recusa da nudez (gimnofobia), a vergonha do corpo (pudibundaria) e o velamento da genitália (pudor), todos três afins entre si e, na verdade, sinônimos uns dos outros, em graus diversos, inveteraram-se nos costumes ocidentais graças ao cristianismo, sem que nenhum deles provenha, originariamente, dele. Ao contrário, os cristãos primevos aceitavam a nudação; a igreja cambiou de opinião e passou a repudiar o corpo e aborrecer a nudez nos séculos segundo e terceiro, com a patrística.

Inexiste censura à nudez nos evangelhos; Cristo ressurecto apareceu perante Pedro, achando-se este nu, sem constrangimento do primeiro em ver o segundo assim nem deste em ser visto despido por aquele.

Em pelota, Cristo acha-se representado em um sarcófago do século quarto, exposto no museu de Latrão; em uma cadeira de Ravena (do século sexto); no batistério dos Arianos e no da catedral de Ravena; em um baixo-relevo na catedral de Monza (do século sétimo); em uma pintura no cemitério de Pontien (do século oitavo) e não só.[2]

Crucificado nu, nu deveria ser representado, asseria santo Ambrósio, porquanto era uso romano despir totalmente os condenados. É falsa a presença da tanga com que se tornou usual representá-lo.

Nas catacumbas cristãs havia numerosas pinturas de nus: personagens bíblicas, como Adão e Eva, Jonas, Isac, Daniel, Tobias, Cristo infante e batizado, bem assim as representações de figuras fantásticas, como os gênios, os amores e as estações do ano.

Para mais disto, os primeiros cristãos associavam a nudez à cerimônias purificadoras. Malgrado se introduzissem os batistérios a partir de Constantino (313), até os primórdios do século 13 batizava-se por imersão e em total desnudamento, nos rios e nas fontes. Assim, João Batista fê-lo no rio Jordão; Paulo batizou Lídia, mercadora de púrpura, nas proximidades da vila de Felipes; na Inglaterra, Agostinho e Paulino batizaram em rios. Apolinário e Vitor, à beira-mar.

De Constantino por diante, batizavam-se os adultos, duas vezes por ano, na porção ocidental do império romano, na Páscoa e em Pentecostes, o que provocava aglomerações de homens e mulheres desnudos, conquanto separados por sexo. Apesar disto, Agilulfo, rei dos lombardos, e sua mulher Teodelina, foram batizados na mesma tina.

Em pintura exposta em Reims, do século 15, Clóvis, batizando, acha-se despido e acompanhado por francos, igualmente nus.

Após a imersão, ungiam-se os batizandos com óleo santo, à maneira dos atletas gregos, informa João Crisóstomo;  segundo Cirilo de Jerusalém a unção recobria-lhes a totalidade do corpo, pelo que havia nudez e toque da genitália.

Na Cidade de Deus (capítulo XIV), Agostinho expõe porque as partes viris, qualificadas de nobres pelos antigos, deveriam, ao revés, ser designadas de vergonhosas: por não as dirigir a vontade, porém o instinto. Por tal lógica, o coração, o fígado, os rins, as glândulas e a maior parte dos orgãos humanos deveriam igualmente envergonhar porque da mesma forma subtraídos à ação da vontade.

Em fins do século segundo despontaram inúmeras heresias, que culpavam a matéria (o corpo sendo material) como causa de todo mal. Satúrnio, Montano, Marcião, Taciano exaltavam a virgindade; à ordem de crescer e multiplicar-se, Marcião opunha um deus bom, proibidor das relações sexuais; Nassenes, Perates, Sethiens, Maniqueu, recomendavam o celibato. Eram doutrinadores em alguma medida persuadidos pelo dualismo persa.

Embora a igreja reprimisse tais doutrinas e conquanto se executassem os seus aderentes, persistiu-lhes a moral do ódio do corpo e o desprezo por ele e, máxime, da sexualidade e da mulher,   que se entranhou nos primeiros teólogos (Clemente de Alexandria, Tertuliano, Cipriano, Atanásio, Agostinho, este possivelmente o mais maléfico de todos, porque mais duradoura a influência das suas concepções, ao longo de toda a história ocidental posterior).

Alguns cristãos, por outro lado, os adamitas, enalteciam a nudez. Coeva de Agostinho, os adesos ao adamismo reuniam-se despidos, estado em que ouviam leituras, rezavam e celebravam os sacramentos.

Uma passagem de Heródoto permite desvendar a origem do pudor: “Entre os lídios, como entre quase todo o resto das nações bárbaras, é um opóbrio, mesmo para um homem, aparecer nu”.[3]

A mesma informação exprime-a Platão, na sua República: “[...] após haver-lhes recordado que não faz muito tempo que os gregos, exatamente como a maior parte dos bárbaros, reputavam vergonhoso e risível que os homens fossem vistos nus e que no dia em que principiou a prática da nudez, no ginásio,  primeiramente em Creta e depois na Lacedemônia, havia assunto para as pessoas divertidas gracejarem!... Mas, quanto ao uso, pareceu-lhes, penso, que é preferível despojar-se das suas vestimentas em todos os exercícios deste gênero, a estar completamente vestido; então, o que era ridículo, para os olhos, desapareceu sob a ação do que, pela racionalidade, mostrou-se melhor... Só os povos bárbaros acreditam que a vista de um homem nu é espetáculo vergonhoso e horrível”.[4]

A Lídia compreendia região da Ásia Menor, na atual Turquia; por bárbaros, os gregos designavam os povos do antigo império Aquemênida, vale dizer, persa que, no período da sua máxima extensão, conglobava os atuais Turquia, Irão, Paquistão, Trácia, Macedônia, Afeganistão, Iraque, norte da Arábia Saudita, Israel, Jordânia, Líbano, Síria, Egito e Líbia.

Em suma, na Ásia antiga, em geral, reprovava-se a nudez perante outrem, ao contrário da Grécia, em que não apenas não se reprochava, como, ao contrário, era ela bem-vinda e bem vista: por cerca de seiscentos anos, os atletas gregos disputavam as Olimpíadas nus (desde a décima quinta, em 716 antes da era atual, até a derradeira, em 382); também nus praticavam ginástica (vocábulo originário do grego gimnadzein, exercitar-se nu); a estatuária grega e, a seguir, greco-romana, figurava as personagens nuas; Zeus estava despido; sob Licurgo, rapazes e raparigas apresentavam-se costumeiramente despidos nas ruas de Esparta.

Duas mentalidades coexistiram, acerca da nudez: a grega e a oriental, das quais a primeira entendia o corpo e a sua exposição com naturalidade, dissociados de erotismo, de qualquer nota pejorativa e de qualquer sentimento vergonhoso. A segunda reprovava a exposição do corpo e foi ela que se inveterou no ocidente, em conseqüência da sua penetração no cristianismo que, inicialmente simpático ou ao menos indiferente à nudez, cambiou de entendimento e passou a, veementemente, detestar o corpo e com ele a sexualidade, o asseio e o desnudamento.

Maniqueu, teólogo cristão do século terceiro

Maniqueu, teólogo cristão do século terceiro, combinou o dualismo persa com o cristianismo e originou a heresia do maniqueísmo, segundo a qual há dois poderes no mundo: Deus e o Diabo, a que correspondem, respectivamente, o bom e o espírito, o mau e a matéria. Nesta, inclui-se o corpo. Malgrado reprimido pela igreja oficial, o maniqueísmo perdurou e despontou na heresia dos albigenses; mais do que isto, a sua concepção entranhou-se nos teólogos dos séculos segundo e terceiro e transmitiu-se ao cristianismo posterior.

Admitia-se, na Lídia, haver um ser supremo, o tempo eterno, de que provinham dois princípios antagônicos, em combate perpétuo e autores de componentes opostos do mundo: de Arimão, princípio do bem, provinham as almas imateriais, as forças e as energias salutares; do princípio do mal, Ormuzde, originaram-se a matéria, as trevas, os poderes maléficos e o corpo humano. Tratava-se de princípios da religião instituída por Zoroastro ou Zaratustra.

Do dualismo de princípios originou-se o estigma do corpo, o ódio da carne e dos orgãos sexuais, que se espraiou em Sippar, na Babilônia, em Assur, Nínive, Rhagés, Ectabana, Tiro e Jerusalém. Daí a dissimulação do corpo sob roupagens espessas; o horror da carne abominável; a vergonha do corpo patente nos livros sagrados respectivos.

Natural de Ur, na Caldéia, Abraão aderiu ao dualismo e à sua repulsa do corpo; no Pentateuco, notam-se ambos, como usos e mentalidade do povo de Israel.

O texto do Gênesis relata a criação do homem e da mulher, aquele à imagem e semelhança do criador. Se o homem é dotado de pênis e escroto, logo, deus é masculino e aparelhado com os mesmos orgãos.

Ao invés de glorificar-se o corpo, masculino ao menos, como imagem do divino, deu-se o oposto, mercê da interpretação maligna, dualista, da lenda de Adão e Eva, em que se identificou o pecado original com o congresso sexual entre ambos, quando a leitura atenta da Bíblia desmente-a: o pecado original não decorreu da atividade sexual deles, porém, ao contrário, primeiramente houve o pecado, a seguir, a expulsão do Paraíso e, finalmente, já expulsos, Adão e Eva copularam.

Conquanto recusada pela igreja, a interpretação que associa a queda à sexualidade perpetuou-se e difundiu-se.

No Exodo (20:26), deus ordena a Moisés: E tu não subirás ao meu altar pelos degraus, de medo de que a tua nudez seja descoberta ao subi-los, o que se confirma alhures, como, por exemplo, no capítulo 28, versículo 42, em que deus dispõe o feitio do traje dos sacrificadores: E tu far-lhes-ás calções de linho para cobrir a sua nudez, que se estenderão dos rins até a parte inferior das pernas.

Tais mandamentos explicariam, por generalização, a idéia de impudor que as populações cristãs associam à nudez da genitália e justificar-lhes-iam os costumes e mentalidade. É explicação, contudo, que a observação histórica desmente e que a teologia nega.

A teologia nega porquanto deus emitiu aquelas ordens para destinatários específicos e não para a totalidade dos seus fiéis. No primeiro caso, proibiu a ascensão por degraus – que se usassem rampas ou veículos; no segundo, os sacerdotes deveriam trajar calças curtas, como indumento ritual próprio deles, cujo uso deus não estendeu à generalidade das pessoas.

A observação histórica desmente que tais ordens suscitassem o pudor porquanto, na estatuária egípcia, o surgimento do tapa-sexo coincide com a chegada dos judeus na região do rio Nilo, cerca de 1650 anos antes da era atual. Simultaneamente, desaparecem da ornamentação dos templos e dos hipogeus a figuração do pênis, sob forma de obeliscos e de estilizações, bem assim as flores de lírio, estilização do sexo feminino.

O preconceito contra a genitália não resultou das prescrições divinas no Exodo, emitidas ao retirarem-se os judeus do Egito; ao contrário, eles já o adotavam ao lá chegarem. Deus não lhes teria ordenado práticas que eles já empregavam; o legislador, contudo, atribuiu-lhes origem divina, mesmo porque, evidentemente, inexiste revelação divina.

Inexiste deus nenhum que prescreva ou proíba seja lá o que for a seja lá quem for. São fantásticas e evidentemente fictícias e mentirosas todas as narrativas bíblicas segundo as quais a divindade comunicou-se com os humanos, prescreveu-lhes comportamentos e incutiu-lhes idéias, valores e concepções.

Pequena estátua de uma garota nua. Egito cerca de 1390-1353 a.C.

Cerca de cinco séculos após a partida dos judeus ressurgiu, na arte egípcia, a ornamentação sexual, sintoma, por sua vez, da duradoura persistência da influência deles.

Se o cristianismo, ao tornar-se culturalmente dominante no ocidente, formou o ethos das populações em que prevaleceu e incutiu-lhes a pudibundaria, a vergonha da exposição da genitália, a repressão acentuada da sexualidade, tais traços não lhe foram, contudo, originais, não resultaram diretamente da sua doutrina, porém ingressaram nela por contaminação do pensamento oriental, como, demais, sincrético, o seu corpo doutrinário mesclou diversos elementos asiáticos e alheios aos dois testamentos. Uma vez, todavia, persuadido o cristianismo da mentalidade pudômana, ele a manteve e a vem mantendo ao longo da sua existência; acentuou-a o jesuitismo, que, no seu combate à reforma luterana, investiu contra dois inimigos: o protestantismo e a nudez.

Pudibundos os asiáticos dualistas, tornaram-se pudibundos os cristãos dos séculos segundo e terceiro por diante; pudibundos os cristãos, os jesuítas enfatizaram-lhes a pudibundaria.

Com isto, o preconceito anti-nudez, originalmente asiático e alheio ao cristianismo, tornou-se cristão e, a seguir, especialmente jesuítico.

O ocidente cristianizado, longe de herdar a mentalidade helena, aberta ao corpo, simpática à sua naturalidade, receptiva à sexualidade como componente normal e natural do ser humano, desconhecedora do pudor, favorável à nudez e admiradora do nu belo, incorporou a mentalidade asiática, fechada ao corpo, antipática à sua naturalidade, recusadora da sexualidade, afirmadora do pudor, hostil à nudez e cega à beleza do nu.

No seu sincretismo, o cristianismo incorporou o dualismo asiático, em detrimento da mentalidade grega e, malgrado o deus cristão houvesse criado toda a matéria e o corpo humano, ao invés de louvá-las como obras divinas, o cristianismo reprovou o corpo, o seu uso, o seu asseio (ao menos em séculos anteriores) e a sua exposição. Ao fazê-lo, formou, ao longo de incontáveis gerações e de mil e setecentos anos, uma tradição cultural de repressão intensa da sexualidade, de vergonha do corpo, de repúdio da nudez. Ele esqueceu-se da sua raiz (em parte) asiática e condenou o maniqueísmo, porém afirmou-os nas mentalidades e impô-los nos costumes.

Hoje, a Europa esclarecida e secularizada abandonou, já há cerca de 120 anos, o pudor do corpo. O europeu atual não se peja do seu corpo; a sua mentalidade é grega.

Hoje, as classes brasileiras cultural e economicamente superiores vão se tornando receptivas à naturalidade do corpo, embora mantenham timidez em expô-lo. As classes baixas (intelectual e economicamente) aferram-se à gimnofobia e à pudibundaria, no seu temor de deus e na sua obediência à Bíblia.

Augusto Comte (1798-1857).

Filósofolo francês

Como dizia Augusto Comte, as pessoas são desigualmente contemporâneas, desigualdade que se acentua com as dessemelhanças de classe social e de lugar: os europeus, de mentalidade novamente grega, vivem, há gerações e décadas, a liberdade e o secularismo; as classes brasileiras elevadas  aproximam-se do estado mental europeu. Enquanto isto, as classes brasileiras reles mantêm o dualismo persa e o ethos arcaico de várias gerações e décadas.

Fim do trabalho.

Citações desta parte:

[1] Para este tópico vide, de Fougerat de David de Lastours,  L´homme et la lumière, Garches (França), 1946,  e Morale et nudité, Paris, 1929.

[2] NADEL, H. La nudité à travers les âges. 1929, p. 24.

[3] Tradução minha, do francês: “Chez les LYDIENS, comme chez presque tout le reste des nations BARBARES, c´est um oppobre, même à um homme, de paraître nu”, in L ´homme et la lumière, p. 126, de Fougerat de David de Lastours.

[4] Tradução minha, do francês: “[...] après leur avoir rappelé qu´il ne s´est pás écoulé beaucoup de temps depuis l´époque oú les Grecs, exactement comme le plus grand nombre des barbares, jugeaient honteux et risible que des hommes se fissent voir tout nus, e que le jour oú la pratique de la nudité au gymnase fut inaugurée, d´abord en Crète puis à Lacédémone, Il y avait matière pour les gens spirituels d´alors à tourner tout cela en farce!... Mais, lorqu´à  l´usage, Il leur fut apparu, je pense, qu´il est préférable de se dépouiller de ses vêtements pour tous les exercices de ce genre, plutôt que d´en être complètement enveloppé, alors ce qui était risible, pour les yeux en vérité, disparut sous l´action de ce qui pour le raisonnement, s´était revele le meilleur... Il n ´y a que les peuples barbares pour croire que la vue d ´um homme nu est un spetacle honteux et affreux”, in “Tout em NU de A à Z”, p. 249, João Lucas (Jean-Luc) Bouland.

 

por Arthur Lacerda

arthurlacerda@onda.com.br

19/04/15

 

(enviado em 13/05/15)


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