Jornal Olho nu - edição N° 236 - Julho de 2020 - Ano XX

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Não sou dono de minha imagem

por Pedro Ribeiro*

 

Esta obra de Renè Magritte, cujo título em português é "Isto não é um cachimbo", questionava sobre o fato de se considerar a imagem representada de um objeto como se fosse o próprio objeto real.

 

Quando eu era criança lembro-me de assistir a alguns filmes na TV, tipo Jim da Selvas ou Tarzan em que em alguns poucos episódios, havia na trama, uma forma utilizada para o invasor  conseguir submeter uma tribo indígena à exploração, era aprisionar a alma do chefe, do pajé, ou do principal guerreiro através de sua fotografia. O fotografado acreditava que sua alma ficava aprisionada naquela imagem e o fotógrafo passava a ter total poder sobre ele. Na época eu, mesmo criança, achava aquilo um absurdo e achava os pobres selvagens "muito burros" - pensamento da época, repito. Hoje eu diria que eles eram apenas ingênuos. Reagiam daquela forma porque não tinham conhecimento suficiente sobre o que é uma imagem apenas. Aquilo era uma ficção. Na medida em que cresci comecei a acreditar que era apenas uma invenção do roteirista para poder dar uma história emocionante. No  mundo real ninguém cairia neste "conto do vigário". Nem mesmo as tribos mais afastadas.

 

Img: Carlos Freitas

Isso não sou eu, mas apenas uma imagem de mim.

O que é uma imagem afinal?  Imagem, segundo definições técnicas do campo das artes, é a representação de uma ideia ou de uma realidade, de acordo com a visão do autor da imagem. Por mais fiel que seja. A imagem nunca é real, seja uma fotografia ou uma pintura, ou um vídeo. É apenas, em todos os casos, uma representação.

 

Renè Magritte, o artista plástico belga, que viveu no início do século 20, já afirmava isso, nas suas obras expostas nos museus do mundo, causando grande espanto para os apreciadores da arte da época, mas levando à reflexão sobre suas propostas. Afinal o que nós vemos é o real?

 

Nós, pobres mortais, que conseguimos entender que aquela imagem refletida em um espelho é a nossa própria, nem sempre gostamos do que vemos, e, às vezes, temos tanta aversão a ela, que nos recusamos a olhar para ela mais fixamente, por vergonha, ou modéstia, mas com uma agravante, somente conseguimos ver nossa imagem de frente ou de lado e invertida. O seu amigo que olha para você pode ver-lhe por inteiro, frente, costas, lado, em cima, em baixo, imediatamente e sem seu controle, regiões de seu corpo que você nunca vê. Mesmo que você não goste da imagem representada no espelho, todas as outras pessoas do mundo podem ver você, sem sua autorização, aquele corpo cuja imagem você ama ou odeia e todos os detalhes, por mais que você os esconda. Aterrorizante, não é mesmo?

 

O ser humano, desde seus primórdios na face da Terra, sempre gostou de fazer representações do que vê, dando sua interpretação pessoal. Eram esculturas, pinturas nas paredes e onde fosse possível. Com a evolução das técnicas de representação, as imagens passaram a decorar paredes em painéis pintados, esculpidos ou nas novos meios surgidos. No auge da pintura a óleo, a quantidade de representações do corpo humano em telas disparou e a produção criou obras-primas conhecidas até hoje. A imagem começou a se eternizar.

 

Img: Wikipédia

"Davi" interpretado por Michelangelo Buonarroti

Com o evento da Fotografia em meados do século XIX, esta nova técnica começou a substituir paulatinamente as representações "fiéis" da realidade feitas pelas pinturas, provocando o ambiente necessário para o surgimento da "arte moderna". À medida que a fotografia se tornava mais barata e popular, ela chegou universalmente a todos. Já era possível qualquer um fazer sua própria representação da realidade, claro limitado por conhecimentos técnicos e financeiros.

 

A evolução não parou. Surgiu em meados dos anos 80 a fotografia digital, inicialmente muito pobre em definição de imagem, evoluiu rapidamente e substitui quase integralmente a fotografia que usava a mídia técnica do filme negativo, que precisava ser "revelado" e impresso em um papel especial. Nunca na história da humanidade foi tão possível representar a realidade através de imagens. E é a partir deste momento, que após tanta evolução técnica voltamos ao ponto comentado no início deste artigo. As pessoas começaram, aparentemente, a ter medo de sua alma serem aprisionadas numa imagem, como os selvagens ingênuos do Jim das Selvas?

 

E, hoje em dia, a fotografia - representação de uma imagem - está virando o grande vilão no meio naturista. Em algum momento da história recente da humanidade alguém inventou a expressão "direito de imagem", como se a imagem dela representada fosse a própria pessoa e não apenas uma imagem. Antes eram somente artistas que viviam financeiramente de sua imagem, que reivindicavam esse direito de uso da imagem somente com autorização e, claro, com pagamento de alguns "trocados" para ceder o direito a outro. De certa forma, ação compreensível, pois a imagem do dito cidadão estava sendo explorada comercialmente. Por esse motivo, atores de filmes de cinema e de novelas, que fizeram um trabalho diante das câmeras em determinada época, autorizado por eles próprios e, muitos, foram regiamente pagos para isso, têm direito a receber uns trocados toda vez que a obra é reexibida (não só eles, mas também todos os técnicos e equipe de produção da obra). Acho justo, já que a obra passa a ser explorada comercialmente novamente. Mas, por outro lado, deixa-me a pensar: não é uma forma de trabalho infinita? esses direitos não poderiam ser correlatos a outras profissões, como a do professor, por exemplo, que ensina o cidadão? Toda vez que o ensinado usasse o conhecimento transferido a ele pelo professor, este não deveria então ganhar royalties pelo seu trabalho no passado?

 

Afinal o que é uma imagem? Refiro-me a do cidadão comum. A imagem que você vê no espelho é a sua imagem real? É a imagem que os outros veem de você? Todo mundo vê a mesma imagem de você? Quanto não tem de nossa interpretação, cultura, vivência e muito mais, toda vez que olhamos um objeto e as demais pessoas? Todo mundo vê a mesma imagem que você vê? A imagem se forma na retina mas é compreendida em nosso cérebro. Mas o é da mesma forma para todos?

 

img: napraiaapp

Será que todas as pessoas representadas nesta imagem deram autorização para isso?

Não demorará muito para que as pessoas que se acham especiais exijam um trocado para serem vistas pelas outras, o que já acontece em shows e peças de teatro, mas em breve haverá direito de imagem nas ruas. Para você olhar uma celebridade que estiver tomando sol na praia de Copacabana terá que pagar o tal direito de imagem, senão terá que fechar os olhos e ir para outro local.

 

É assim nossa imagem no Naturismo. Não sou eu que estou pelado na foto, mas sim a imagem de mim, que teve uma série de momentos naquela representação da realidade, como luminosidade, ângulo, foco, qualidade do equipamento e mais uma dezena de variações que fazem daquilo apenas uma imagem, nada mais, mesmo que tenha sido um instantâneo sem nenhuma preparação consciente.

 

Desta forma são inócuas todas essas discussões e controvérsias sobre as fotos tiradas no naturismo. Por mais lindas ou posadas ou espontâneas ou nuas que sejam são apenas imagens e nada mais. Da mesma forma que eram as imagens produzidas pelos grandes pintores dos séculos passados que retratavam pessoas, cenas, paisagens, com a diferença que o resultado dessa imagem demorava mais tempo para aparecer. Será que o retratado depois exigia direito de imagem e impedia sua imagem ser exibida para outras pessoas?

 

Nós estamos no século do imediatismo. E é isso que assusta. Não é mais necessário esperar tempo algum para ter a imagem divulgada. Enquanto que no século XV, por exemplo, um retrato a óleo, bem acabado, demorava até mais de três meses para ser terminado, evoluiu para uma semana de espera quando nós tínhamos que revelar as fotografias. Hoje a imagem é imediata e completamente compartilhada. E as pessoas se sentem inseguras, como se fossem elas próprias que estão passando de aparelho em aparelho. Mas, não, continua sendo apenas uma imagem, uma interpretação, um registro.

 

No momento estão se criando regras para poder tirar fotos (ou não poder) nos encontros naturistas, e desta forma o naturismo vai se distanciando cada vez mais da naturalidade. Lembro que quando eu e meus irmãos íamos à praia com meus pais, quando eu era criança, era um acontecimento, e queríamos registrar o feito, com poucas imagens, é verdade, pois o filme e a revelação eram caros. Reuníamos o grupo e, clique, lá estava registrado, sem termos certeza que saiu como a gente queria, coisa que só iríamos descobrir uma semana depois, no mínimo, quando íamos no laboratório pegar e pagar pelas revelação e cópias. Mas no momento da foto não tomávamos qualquer cuidado se ia aparecer um não convidado passando, usando suas roupas de banho ou de terno e gravata. Era o instante, o registro do momento que importava. Era o natural.

 

Claro que o mundo mudou. Naquela época poucas pessoas teriam acesso àquelas imagens, que eram compartilhadas pessoalmente por alguns dias e depois iam parar no fundo de uma gaveta e somente revistas anos depois, para relembrar o feito do passado, geralmente ao acaso. Aquelas imagens tinham valor emocional, mas nunca passavam de imagens. Ninguém se julgava preso naquela imagem. Até mesmo nas infalíveis carinhas dos netinhos que formavam um quadro na parede, ou em um grande quadro com a imagem do casamento do senhores da casa, que ficavam toda uma eternidade expostos não traziam a sensação de alma presa, como ocorria no "Jim das Selvas" e suas tribos ingênuas.

 

Img: Estevâo Prestes

Imagem de praia naturista

O Naturismo deve ser natural e espontâneo. O registro farto de imagens é marca de nossa época. Mas quem não quer a imagem de seu ser registrada que avise antes e essa vontade deve ser respeitada. Acredito que esta regra seja suficiente. Se ela for quebrada que se aplique as sanções cabíveis ao infrator, e se a imagem for divulgada, lembre-se de que você não é a imagem de você, nem mesmo deveria ser o dono dela. Se alguém perguntar diga: isso não sou eu, é apenas uma imagem.

 

(enviado em 14/07/20 por Pedro Ribeiro)  


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