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Jornal Olho nu - edição N°224 - Julho de 2019 - Ano XIX

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Corpo-Verdade: Uma Transcendência Possível

 

Paulo Pereira
Junho/2019
 

Rabino Nilton Bonder

Corpo e alma, longe de qualquer contradição, formam uma autêntica e antiga dialética, um discurso permanente que progride por rupturas preciosas, e que frequentemente é mal percebido, pedindo certamente um enfoque mais nítido, mais rico, sobretudo, nesses tempos estranhos, assaltados pela miopia intelectual e pelo nefando analfabetismo conceitual.
 

Diante desse cenário, consulto meus alfarrábios e recorro às palavras sábias do consagrado rabino Nilton Bonder, que nos fala, em linguagem didática, de uma alma que deve transgredir para libertar-se, para evoluir, para realmente transcender, e de um corpo que não repele sua nudez inapelável e que busca perpetuar-se através da reprodução, como teria observado acertadamente Sir Charles Darwin... E esse corpo, anotemos, é a nossa casa no mundo, nossa nua e crua identidade, corpo inteiro, corpo natural, todo energia, corpo-verdade!
 

Considero, então, de forma enfática, as reflexões e colocações de Nilton Bonder em seu excelente livro chamado “A Alma Imoral”, buscando modestamente um exame atento e conciso desse inquietante tema, que visa o confronto, ou a união, de corpo e alma, de instintos e consciências, até de lendas e de muitas verdades. Bonder, sempre lúcido, prestigia diretamente a história, o devido conhecimento histórico-filosófico e científico, e cita um antigo pensador, Maharal de Praga (1525-1609): “Sempre fomos livres nas profundezas do nosso coração, totalmente livres, homens e mulheres; fomos escravos no mundo externo, mas fomos homens e mulheres livres em nossa alma e espírito”... A mãe-natureza, de fato, nos ensina a verdade sem véus: homens e mulheres nascem nus, sem pedir julgamentos, a nudez, por exemplo, sempre vivenciada como adaptação à vida, como bem proclama Rose Muraro... Seria, então, oportuno sublinharmos, de passagem, algumas indagações que se afirmam incessantemente: liberdade ou escravidão, atitude ou comodismo, transgredir ou estagnar? Devemos lembrar que não é proibido pensar, cultivar o bom senso e a sabedoria, jamais.
 

Fragmento da obra "A Criação de Adão" de Miguel Angelo

Quando alguns ilustres fariseus insistem, patéticos, em vestir todos os corpos e censurar as almas livres, é precisamente o rabino Bonder que, sagaz, nos recorda que a nudez humana é, na prática, irrecorrível: “Não importa o quanto Adão se escondia; cada vez mais descobria sua nudez. O não-encontro de si mesmo está na incapacidade de arcar com a transgressão”... Por isso mesmo, é importante ressaltarmos aqui e agora, muitos indivíduos, mesmo sem roupas (inclusive alguns ditos naturistas), permanecem estranhamente vestidos, engessados, cobertos por crendices e preconceitos, inclusive por velhos mitos, medos e interesses menores. O verdadeiro encontro consigo mesmo é uma obra de despojamento consciente; de reconstrução íntima, que só acontece pelo conhecimento. A transgressão consciente de medos, de pudores e de convenções mofadas, afastando as ideias de pecado e castigo, vai nos conduzir, enfim, ao grande encontro com a verdade nua.
 

Na procura efetiva do chamado corpo-verdade, é mister considerar, sem quaisquer fobias, o corpo sexuado, natural, finito. A sexualidade não pode ser vista como extravagância ou mero acessório, e muito menos como tabu, como vergonha. A natureza, soberana, jamais vestiu alguém por questão de pudor... E, falando de corpo sexuado, Anne Marie Sohn é afirmativa: “Se os corpos nus fazem parte, hoje, do nosso quadro cotidiano, isso se deve à erosão progressiva do pudor durante muito tempo inculcado como verdade desde a primeira infância, e reforçado para as filhas na adolescência”. Para encontrarmos o corpo-verdade, em síntese, torna-se indispensável um despojamento integral, que promova a real conjunção de homem e natureza (e vale sublinhar, então, que essa conjunção homem-natureza é precisamente o que preconiza o Movimento Nudista-Naturista desde o início), sem invencionices...
 

Voltando às palavras definitivas de Bonder, mostra-se oportuno reafirmar mais uma de suas colocações: “Por acaso, Deus precisa de nossos atos morais, que visam ocultar nossa nudez?” Eis a grande questão, talvez para aflição dos fariseus de sempre. Bonder investiga os textos das tradições judaico-cristãs, e nos fala da alma, que precisa transgredir, possibilitando pensamentos renovados, criativos, libertários. Segundo Bonder, a psicologia evolucionista, proveniente da Teoria de Darwin, compreende o corpo como o maior responsável por nossos hábitos e cultura. Essa psicologia evolucionista nos põe a nu diante do mundo e revela a dimensão animal inquestionável do nosso ser, como ressalta Bonder. Recordo, aqui e agora, o que nos disse, com inteira propriedade, o grande Lama Surya Das: “Você se torna Buda quando vive integralmente sua natureza inata original. Essa natureza é primordialmente pura; ela é sua verdadeira natureza, sua mente natural”.

 

Homem nu interage com criança durante performance no MAM em 2017, causando grande polêmica e processos.
Fonte: Gente - iG (Reprodução)

A nudez humana, traje de nascença, é nossa verdadeira natureza, nosso corpo-verdade, repito, nossa real identidade. O referido rabino Bonder vai direto ao ponto essencial, à percepção do estado de nudez, que devemos anotar com atenção: “Não existe, na verdade, outro nu além daquele que se percebe nu. E grande é o paradoxo humano no qual não há humano que seja digno sem uma boa noção de si como nu... Nudez que não se sustenta sob qualquer forma de naturalidade porque, por definição tanto bíblica como do bom senso, não há nudez na natureza. O ser humano se fez o mais vestido e o mais nu dos animais”. Observação precisa, respaldada cientificamente, que pede entendimento adequado. Qual o motivo de tanto estranhamento diante da nudez?

 

O homem procura vestir-se porque se percebe nu, mas desconhece o verdadeiro sentido do estado de nudez. Bonder tem plena razão porque, a rigor, não há uma “natureza vestida” ou uma “natureza nua”: a natureza, como nos ensina Richard Dawkins, não é boa nem má; a natureza é apenas indiferente. A natureza não é nua ou vestida, isso ou aquilo; a natureza simplesmente é!... Quando o ser humano estranha, e condena, a nudez, ele estranha a vida, a verdade natural, e sua própria identidade física. O pudor radical diante do nu é enfermidade, grave miopia intelectual ou cognitiva, geralmente fruto de desinformação, ignorância essencial.

 

Quando usamos a expressão “natureza nua”, por exemplo, é certamente com sentido de “natureza pura”, “natureza intocada”, “natureza sem véus”, talvez por isso mal compreendida. De fato, a nudez humana pode ser considerada um “must”, “um dado primeiro” (segundo Rose Muraro), uma verdade natural irrecusável. E Bonder arremata, perspicaz: “Um corpo com moral cria um mundo de roupas que veste o nu, mas o nu continua visível, mais talvez do que quando não era coberto por qualquer roupagem”... Eis a boa reflexão, sobretudo, para os afoitos que pretendem negar o óbvio, a nudez natural inapelável, e até o Nudismo como filosofia de vida. Não há, e nunca existiu, por exemplo, um “naturismo” sem “nudismo”, até porque, debaixo das roupas, todos nós estamos totalmente nus! Basta de preciosismo pueril, de niilismo conceitual, de versão ideológica em vez de fato datado!
 

O ser humano, como ressalta o rabino Bonder, evolui quando cria, quando transgride. A alma é a parte transgressora, sua dimensão “imoral”, sua capacidade evolutiva, que busca vencer a estagnação. Bonder, objetivo, nos diz: “Só a alma transgressiva, só a traição evolucionária ao “establishment” do corpo, do corpo moral, resgata a verdadeira possibilidade de imortalidade... A alma imoral cumpre o papel de proteger essa imortalidade na esfera da consciência”. É, pois, indispensável questionar para evoluir, “para inventar o novo homem do agora”, como proclama Bonder. Questionar, refletir, buscar referências idôneas, criar, evoluir...

 

Capa da revista Pais e Filhos em 1970. Seria esta capa possível nos dias atuais?

Essa evolução é um processo, que pressupõe etapas distintas, eventualmente. E processo, enfatizemos, é sinônimo de sucessão, de realização contínua, procedimento. Recordemos, de passagem, que a efetiva história do Nudismo (Nudismo Social Moderno) ou Naturismo, baseada no culto sem vestes do natural (da nudez social) como filosofia de vida, desde R. Ungewitter, é um concreto processo histórico, uma sucessão datada, que compreende várias fases e anota dezenas de pioneiros ou líderes, jamais fruto do destino, do acaso, de armações ou de ideologias partidárias ou religiosas, com certeza. Então, negar uma ou mais das fases do processo é simplesmente distorcer a verdade histórica e, no delírio, tentar substituir o todo por uma das etapas, inviabilizando, pois, o real processo, preferindo a parte em lugar do todo, um metonímia descabida, interessada.

 

É novamente o sábio Nilton Bonder que nos socorre agora nessas questões de conceito, de conteúdo, de processo histórico-filosófico: “O que hoje é flor, ou ser humano, um dia foi material celeste, parte (ou poeira) de estrelas, energia”... Em sua obra inquietante “Sobre Deus e o Sempre”, Bonder vai fundo à verdade. E, dessa forma, ramo e folha, raiz e flor, caule e frutos, são parte integradas do mesmo corpo vegetal. Certamente, sublinhemos, não há telhado sem alicerce, não há fruto sem semente, assim como não há “depois” sem “antes”!
 

Obra de Alexandre Mury, relendo Abaporu de Tarsila do Amaral

É oportuno recordar, especialmente quando falamos de corpo e alma, que a hipocrisia e o ódio, pelo menos, sempre menosprezaram, ou rejeitaram, o corpo, sobretudo, o corpo livre, o corpo nu. A ensaísta Annette Becker, estudiosa e referendada, escreve a respeito dos extermínios, sobre o corpo agredido nos trágicos campos de concentração, nos alertando para o descaminho de animalizar, de coisificar o corpo para cancelar a sua identidade. Annette, objetiva, adverte: “O nome da pessoa, marca da identidade, é substituído pelos números de matrícula, e o desejo de segredo explica também as metonímias eufemizantes”... Nos mencionados campos de concentração, as pessoas viraram meros formulários, números frios, em vez de nomes, a identidade ignorada, ultrajada. Modestamente faço aqui a indicação oportuna de uma atenta releitura do texto do ensaio “Da Identidade Nua”, publicado em 2015, pelo Jornal Olho Nu, disponível para reflexão. Somente o conhecimento e o diálogo sereno podem nos apontar os melhores caminhos.
 

Nesses dias dissonantes que vivemos, quando densas nuvens escuras insistem em cobrir os céus do mundo, e do Brasil em particular, forjando tempestades revisionistas, medievais, torna-se necessária a devida percepção cidadã, baseada, sobretudo, no saber acadêmico. É urgente, até irrecusável, saber somar em lugar de dividir para reinar. Precisamos enxergar o ontem no hoje e no amanhã de forma transparente, sem tolas subjetividades, sem radicalismos enfermos. É imperativo, e de bom senso, prestigiar, repito, a real historicidade em vez de pós-verdades, de distorções intencionais dos fatos, até porque, como diz o adágio popular, texto solto e demasiado, fora do contexto, é só pretexto... Basta de mesmice vazia, de mediocridade pernóstica! É prudente não misturar literatura qualificada e bibliografia afirmada, com literatice barata, sempre lembrando o que nos disse o mestre Goethe: “A verdade nos ensina a conhecer nossos limites”...
 

Fotona - performance contra a censura em 2017

Essa nossa reflexão fraterna busca novamente enriquecimento nas palavras do consagrado rabino Nilton Bonder: “O corpo é nosso meio para existirmos; o corpo é o texto que cada um de nós traz para ser decodificado. O texto do nosso corpo é um território imprescindível; ele é o meio do agora, a amarra entre o antes e o depois”. Anotemos, então, que esse meio do agora, esse nosso traje natural, é o grito silencioso da natureza indomável: é nosso corpo-verdade, que precisamos assumir por inteiro, sem culpas, sem desculpas, sem medos, sem máscaras.
 

O mestre F. Nietzsche, sem qualquer idolatria, dizia sempre que é urgente dar voz ao próprio corpo, mas a sociedade majoritárias, de resto enferma no dizer de E. Fromm, vestida de preconceitos, insiste em ignorar a grandeza do corpo, a verdade nua como nos disse Luz del Fuego, iluminada, destemida. E, ao ignorar o nosso corpo-verdade, a sociedade vestida coloca-se frequentemente ao sabor dos modismos fúteis, dos oportunismos persistentes e das crendices vazias, estimulando comportamentos de rejeição agressiva, de intolerância obscurantista, trevosa. Por tudo isso, nunca foi tão precioso, tão inteligente, dar voz ao próprio corpo, ao corpo-verdade, nossa transcendência possível.

 

Postscriptum: Quando sublinhamos, em cores fortes, o nosso corpo-verdade, afinal, o corpo integralmente nu, enfatizemos igualmente, sem demasia, o conceito histórico-filosófico do Movimento, do Nudismo Social Moderno, ou Naturismo, citando especialmente Jean Deste (“Le Nudisme”, 1961), autor clássico, datado, reconhecido, que declara: “Presente sempre e em toda parte, depois que o mundo é mundo, a nudez pedia para ser codificada, para adquirir o direito de cidadania, sem ser confundida com licenciosidade; o Nudismo é, pois, a nudez organizada”... Isso é História!...
 

E, como complemento registrado, reproduzo as definições (oficial e conceitual) da INF – International Naturist Federation, publicada, inclusive, em várias edições do Guia da INF (Handbook), a seguir:
 

1 – “Naturism is a way of life in harmony with nature, characterized by the practice of communal nudity, with the intention of encouraging self-respect, respect for others and for the environment” (Agde, 1974). – Definição oficial, sem margem para invencionices.
 

2 – “Naturism-Nudism is a variety of ways of recreation and relaxation in nudity, associated with a recourse to natural agents with regard to health, environment and mental balance of the human individual”. – Definição conceitual, registrada, igualmente objetiva, sem margem para palpites vazios.
 

As definições da INF, oficiais, consagram, inclusive, os termos “nudism-naturism” (nudismo e naturismo) unidos por hífen, de uso comum, sem qualquer contradição. Anotemos!
 

Prestigiar o conhecimento adequado e a efetiva historicidade é, sobretudo, dever de coerência, de bom senso, de sabedoria. Restaria, então, perguntar: quem tem medo da nudez, quem tem medo do Nudismo (que nunca foi sinônimo de pornografia, de licenciosidade ou exibicionismo), quem tem medo da História?... Negar os fatos estabelecidos e rejeitar as dimensões do corpo-verdade é inviabilizar as essências da vida. Como nos ensina a milenar escola budista, “precisamos acumular dois tipos diferentes de mérito: mérito de ações virtuosas e mérito que vem da sabedoria, da compreensão, da percepção e da consciência”. O corpo nu, natural, não é a negação da alma; o corpo-verdade é a nossa transcendência possível...

 

Paulo Pereira é é biólogo, jornalista, naturista do movimento precursor do Brasil, já foi presidente da Fraternidade Naturista e da RioNAT, atual membro do Conselho Consultivo da FBrN.

 

(enviado em 24/06/19 por Paulo Pereira)


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