') popwin.document.close() }

Jornal Olho nu - edição N°220 - Março de 2019 - Ano XIX

Anuncie aqui

João Ramalho, o primeiro nudista do Brasil

por Arthur Virmond de Lacerda Neto*

 

João Ramalho é figura incontornável da então vila, depois cidade, de São Paulo, no século 16: foi o primeiro branco que habitou Piratininga e evitou o morticínio dos integrantes da expedição de Martim Afonso de Sousa (em 1532) e dos habitantes de São Paulo (em 1562). Era nudista, bem como os seus filhos: vivia em clima quente, em meio a índios nus, cujas nudezes (própria e deles) não lhe suscitou o pejo que os jesuítas esforçavam-se por lhes incutir.

 

A distinção entre os estados de nudez e vestido faltava aos índios, que somente conheciam o primeiro, porém era percebido por João Ramalho, originário de civilização vestida, malgrado o que, adotou a nudez, fosse porque se integrasse aos costumes silvícolas, fosse por ausência de indumentos disponíveis, fosse por ausência de pejo; provavelmente, pelos três motivos, combinadamente.
Enquanto a nudez dos autóctones correspondia-lhes ao modo tradicional de viver, o nudismo de João Ramalho derivou do deles e contrariava, em alguma medida, o etos cristão e a prática dos seus patrícios portugueses e dos europeus.
 

Enquanto os autóctones eram naturalmente nudistas, Ramalho o foi circunstancialmente, quando seria de esperar que, como cristão, se pejasse da vida em nudez e encobrisse pelo menos a genitália: não o fez. Foi o primeiro nudista brasileiro: originário de meio têxtil (português que era) e a ele coextensivo (quando os seus compatriotas instalaram-se no litoral de São Paulo e, a seguir, em Piratininga), adotou a forma de viver de comunidade nudista (a indígena). Eis porque julgo legítimo considerá-lo patrono (branco) do nudismo brasileiro, bem assim aos indígenas, em geral: antes de advirem os portugueses, já os silvícolas nus habitavam o Brasil. O primeiro nudista brasileiro foi o primeiro indígena do Brasil, figura hipotética e inidentificável; o primeiro nudista branco do Brasil foi João Ramalho.
 

João Ramalho era filho de João Velho Maldonado e de Catarina Afonso de Valbode; nasceu em Vouzela, distrito de Viseu, em Portugal, provavelmente na quinta de Valgode (então pertença dos Malafaias). Moço, desposou a portuguesa Catarina Fernandes das Vacas, que não o acompanhou na sua trasladação ao Brasil e de quem não mais houve notícias. Assim o declara o próprio, no seu testamento, que celebrou em 1580.
 

Ignora-se quando e por que João Ramalho emigrou para o Brasil; as fontes variam em atribuir-lhe diversos anos, como sendo o da sua chegada, no intervalo de 1501 a 1531. Certo é que emigrou antes de 1532, quando Martim Afonso de Sousa encontrou-o em S. Vicente. Havia, então, lá, inúmeros portugueses, bem como em Cananéia, Santa Catarina e até mais ao sul , porém era ele, em 1553, o mais antigo branco serra acima (no planalto de São Paulo), como o adjetivou, por duas vezes, o padre Manoel da Nóbrega, em missivas.
 

Entre 1500 e 1530, sucederam-se trinta expedições portuguesas ao Brasil, com exploração da costa, construção de fortins, estabelecimento de feitorias; era comuníssimo o comércio com o gentio da terra, efeito para que se criaram várias feitorias, com presença de portugueses, de que também os havia como prisioneiros dos íncolas, agentes compradores, degredados, desertores dos navios, náufragos, tripulantes que se quedavam em terra: de algum destes tipos de situação resultou a radicação de João Ramalho no Brasil, não preferentemente por naufrágio nem degredo; possivelmente por mercancia.
 

Ramalho denunciou ao superior dos jesuítas os padres que infringiam o voto de castidade, o que levou Manoel da Nóbrega a providenciar em relação a eles. De então por diante, este passou a simpatizar com Ramalho e vice-versa. A excomunhão foi-lhe levantada antes de 1562.
 

Em 1532 aportou em Bertioga a frota de Martim Afonso de Sousa (chefe de expedição colonizadora e donatário da capitania de São Vicente em 1534), o que perceberam alguns silvícolas, que disto informaram os seus caciques, dentre quem Tibiriçá, que se determinou a atacá-la e que participou a sua decisão a João Ramalho que, por sua vez, intuiu tratar-se de portugueses, dissuadiu-o e persuadiu-o da conveniência de bem recebê-los. Suplicou-lhe permissão para ir defendê-los, com parte dos seus subordinados, ao que Tibiriçá anuiu: à frente de 500 sagitários, Ramalho demandou Bertioga, pressurosamente, para lá chegar antes dos índios adversos aos ádvenas que, por sua vez, avistaram-nos e aprestaram-se para o confronto.
 

João Ramalho aproximou-se do forte então construído pelos portugueses, a quem falou em voz alta, para espanto deles: consultaram-se reciprocamente, por mútuas indagações; Ramalho apresentou-se a Martim Afonso, a quem assegurou que viera para defendê-lo, coadjuvado pelos indígenas que o acolitavam. Coligaram-se.
 

Ao testemunharam os bons termos em que estavam portugueses e Tibiriçá, os demais íncolas também contraíram amizade com eles.
 

Foi decisivo o papel de João Ramalho: assegurou a sobrevivência dos expedicionários, a segurança da expedição colonizadora e a amizade dos indígenas para com os adventícios. Sem a sua intervenção, os portugueses teriam sido exterminados e não haveria principiado o desenvolvimento paulista, tal como se iniciou, naquele momento e com paz entre ádvenas e autóctones.
 

Constou a Martim Afonso que no alto da serra de Paranapiacaba haveria ouro e prata, pelo que Ramalho guiou-o através de trilha dos tupiniquins: rumaram em barcos a remo, de São Vicente até Piaçagüera de Baixo (atual Cubatão); prosseguiram por terras alagadas até Piaçagüera de Cima, de onde empreenderam a ascenção da Serra de Paranapiacaba. Ao atingirem a nascente do rio Tamanduateí, seguiram-lhe o curso, retiraram-se da mata fechada e adentraram vasto campo desarborizado. Ainda ao longo do rio, alcançaram os campos de Piratininga, onde Ramalho era o único branco e onde, posteriormente, fundou-se a vila, depois cidade, de São Paulo.
 

Martim Afonso incrementou o povoamento da marinha, mediante a concessão de sesmarias (de que doou uma a João Ramalho, na ilha de Guaibe, em 1531), e proibiu a entrada de colonos no sertão, o que, todavia, se inobservou: muitos migravam do litoral para o planalto, onde se fixaram, junto de Ramalho. Porque os tamoios atacassem os estabelecimentos portugueses na marinha, Martim Afonso ordenou que todos se congregassem no litoral, como providência de fortalecimento da defesa local, efeito para que se marcou prazo, maior no caso de Ramalho, por estar distante. Ele, contudo, desobedeceu à ordem.
 

Martim Afonso de Sousa atinou na condição de chefe, de Ramalho, na região do planalto paulista. Desde 1517, ele aprisionava os índios inimigos dos tupiniquins e os vendia como escravos para os portugueses, juntamente com Antonio Rodrigues , também português, que se estabeleceu em S.Vicente nos anos de 1520.
 

No planalto paulista aparentemente João Ramalho não residia na vila de Santo André nem na de São Paulo, e sim em Jaguaporecuba, próximo de Ururaí, com a sua numerosa descendência. Terá, contudo, habitado em Santo André ao tempo em que lá exerceu como vereador.
 

Pedro Taques de Almeida Paes Leme credita a João Ramalho a fundação da vila de Santo André e a construção de trincheira que a circundava e de quatro baluartes, cavalgados de artilharia, que a defendesse dos indígenas hostis: constituíra-se povoado composto pela gente de João Ramalho, a saber: os seus filhos e índios (escravos ou agregados). Porque aumentasse, Tomé de Sousa determinou, em 1553, a sua elevação a vila, com nome de Santo André, contanto que, previamente, fosse fortificada com a construção de trincheira e de quatro baluartes suscetíveis de receberem artilharia. Ainda consoante Pedro Taques, Ramalho promoveu-lhes, à sua custa, a construção, bem assim de igreja, cadeia e mais obras públicas necessárias. A seguir, Antonio de Oliveira (loco-tenente de Martim Afonso) ergueu-lhe pelourinho (aos 8 de abril de 1553), em nome do donatário Martim Afonso, e atribuiu ao povoado o nome de Vila de Santo André, de que se investiu Ramalho (já então guarda-mor do campo, com autoridade em todo o planalto de São Paulo) no lugar de alcaide-mor. Lá, Ramalho exerceu, também, os lugares de vereador (em 1557 e 1558). Teodoro Sampaio desmente Pedro Taques : nega Santo André ter tido, em momento algum, trincheira, baluartes, igreja, cadeia. Pedro Taques disse com base nos termos de vereanças de Santo André, de 1553, que desapareceram e a que, de conseguinte, Sampaio não acedeu: ser-lhe-ia indispensável consultá-los para, fundado em fontes primárias, desmentir Pedro Taques. Pondera Sampaio que a alegada igreja teria sido simples capela ou ermida; que a alegada cadeia não passaria de tronco em alguma palhoça e que mais não havia de sólido. São ponderações arrazoadas. Também nega a fundação de Santo André por iniciativa de Ramalho, que atribui à do padre Leonardo Nunes. Elucida: Cabe, sim, a João Ramalho a precedência no movimento povoador, não porém a iniciativa da fundação do primeiro povoado [...] (a saber: Santo André).
 

Em 1560, Santo André foi extinta, por determinação de Mem de Sá (terceiro governador-geral do Brasil), ao ordenar a reunião das suas população, câmara e pelourinho, à vila de São Paulo. Ramalho, que era vereador em Santo André, passou a sê-lo em São Paulo.
 

Na posse da sesmaria doada por Martim Afonso a Pero de Góis, em 1534, Ramalho e Antonio Rodrigues constam como línguas desta terra, ou seja, intérpretes do português para o tupi e vice-versa.
 

Ramalho e Rodrigues foram dos mais antigos povoadores portugueses do Brasil. Enquanto este residia em Tumiaru (na marinha) e amasiara-se com a filha do régulo Piquerobi, aquele era (até, pelo menos, 1532) o único branco residente em Piratininga , onde se amancebara com Bartira (filha do régulo Tibiriçá), com quem deixou geração.
 

Bartira foi batizada pelo padre Manoel da Nóbrega; por ocasião do batizado, ela tomou o nome de Isabel Dias. Provavelmente não desposou Ramalho porquanto este, no seu testamento, refere-se-lhe como sua criada e não como mulher.
 

Consoante o uso dos silvícolas, Ramalho tinha outras amásias, irmãs de Bartira. O sogro de Ramalho, cacique Tibiriçá, também recebeu o batismo e passou a nomear-se de Martim Afonso Tibiriçá, em homenagem a Martim Afonso de Sousa.
 

Por ocasião das investidas dos franceses na Guanabara, Ramalho foi investido, por decisão popular, como capitão-mor da praça, para defendê-la dos índios tamoios.
 

Em 1553, o alemão Ulderico Schmidel esteve em Santo André, onde se desencontrou de Ramalho, pelo que o não conheceu. Considerou-o potentado, até mais poderoso do que o próprio rei: Havia guerreado e pacificado a província reunindo 5000 índios enquanto o rei de Portugal só ajuntaria 2000. No seu livro Viagem ao rio do Prata, atribui a Ramalho a pretensão de governar os portugueses locais, por haver conquistado o país, após haver combatido por quarenta anos nas Índias. São declarações fantasiosas.
 

De começo, os jesuítas antagonizaram com João Ramalho; contudo perceberam que ele ser-lhes-ia valioso na catequização dos indígenas. Foi excomungado porque se recusasse a confessar , motivo porque, certa feita, o padre Leonardo Nunes expulsou-o da capela de Santo André, quando tencionava lá assistir à missa, ou foi excomungado (também ?) por mancebia, em 1549.
 

Era parente do jesuíta Manoel de Paiva, a quem conheceu no Brasil e que chegou ao Brasil (na Bahia) em 1550; três anos depois, deslocou-se para São Vicente.
 

Em duas cartas ao seu superior em Lisboa (o padre Luis Gonçalves da Câmara), o jesuíta Manoel da Nóbrega referiu-se a João Ramalho. Na primeira (datada de 15 de junho de 1553) redigiu: nesta terra está um João Ramalho. É muito antigo nela e toda a sua vida e a de seus filhos é conforme a dos índios e é uma petra scandali para nós porque a sua vida é o principal estorvo para com a gentilidade, que temos, por ser ele muito conhecido e aparentado com os índios. Tem muitas mulheres. Ele e seus filhos andam com irmãs e tem filhos delas, tanto o pai como os filhos. Vão à guerra com os índios e as suas festas são de índios e assim vivem andando nus como os mesmos índios. Por todas as maneiras temos provado e nada aproveita e até já o deixamos de lado. Este, estando excomungado, por não querer confessar [...]. (Grifei.).
 

"Vivem andando nus, como os mesmos índios": Manoel da Nóbrega, testemunho presencial dos costumes de Ramalho, no-lo dá como nudista.
 

Na segunda, de 31 de agosto do mesmo ano, muda de tom e de conceitos, empós o haver conhecido, serra acima: nesse campo está um João Ramalho, o mais antigo homem que nesta terra está. Tem muitos filhos e muito aparentados com todo este sertão. E o mais velho deles levo agora comigo ao sertão por mais autorizar o nosso ministério. João Ramalho é muito conhecido e venerado entre os gentios e tem filhas casadas com os principais desta terra. De maneira que nele, e nela e em seus filhos esperamos ter grandes meios para conversão destes gentios. Esse homem, para mais ajuda, é parente do Pe. Paiva, cá se conheceram. Quando veio da terra, que havia quarenta anos e mais, deixou a sua mulher lá, viva, e nunca mais soube dela, mas que lhe parece que deve ser morta, pois já vão tantos anos. Deseja muito casar com a mãe destes seus filhos. Já para lá se escreveu e não veio resposta deste seu negócio. Portanto, é necessário que V. Rma. envie logo a Vouzela, terra do Pe. Mestre Simão, e da parte de Nosso Senhor lhe requeiro; porque se este homem estiver em estado de graça, fará Nosso Senhor por ele muito nesta terra. Pois estando em pecado mortal, por sua causa e sustentou (sic) até agora. E, pois, isto é cousa de tanta importância, mande V. Rma. logo a saber a esta informação de tudo isto o que tenho dito.
 

Aparentemente, a mulher de João Ramalho vivia em 1553 e obteve-se indulto canônico para os amancebados (como lhe era o caso), a instância de Nóbrega , por pedido de quem João Ramalho mandou um de seus filhos, André, acompanhar Nóbrega em expedição pelo interior da capitania à procura de íncolas que cristianizar, como forma de conferir mais autoridade à catequese, como se apura da segunda carta transcrita.
 

Malgrado a incorporação da vila de Santo André na de São Paulo, os tamoios aliaram-se (em 1562) aos guaianases, aos tupis e aos carijós e acometeram São Paulo. Segundo relato do padre José de Anchieta, surgiram pela manhã, “pintados, emplumados e com grande alarido”. O conflito durou dois dias, em que os inimigos aproximaram-se até a horta dos jesuítas. Ramalho foi nomeado capitão da gente, para chefiar a resistência, efeito para que, em 24 de junho de 1562, os oficiais da câmara de São Paulo tomaram-lhe juramento, de bem e verdadeiramente servir o cargo de capitão, para cujo exercício investiram-no de "amplos poderes [...] determinando que todas as pessoas lhe obedecessem em tudo que fosse necessário para essa guerra, sob pena de prisão, de multa de vinte cruzados [...] e de degredo para Bertioga [...]".
 

Foi-lhe exitoso o comando, graças a que se salvou a incipiente vila de São Paulo que, assim, persistiu. Sem a ação avisada e oportuna de Ramalho (já pela segunda vez), ela teria sido provavelmente destruída, os seus habitantes mortos ou dispersados e outro ter-lhe-ia sido o destino: cessar-lhe-ia a existência, de todo, ou interromper-se-ia por algum lapso, até que se congregasse gente bastante para impor-se aos silvícolas.
 

A cidade de São Paulo deve a João Ramalho a perduração do seu núcleo populacional primevo. Graças a haver tido prole, com várias índias, e a haver se entrosado com os íncolas, desempenhou papel insubstituível na interação entre eles e os portugueses, de que estes teriam sido exterminados pelos indígenas a eles hostis, sem a defesa que lhes propiciaram Ramalho e os indígenas em quem exercia preponderância, notadamente Tibiriçá, seu sogro. A sua decisão de defender os colonos e a sua posição de capitão da guerra foram determinantes para que Tibiriçá o coadjuvasse. Ramalho exerceu influência em sua numerosa descendência mestiça, aparentada, por isto, com os principais elementos da população local, o que lhe granjeou alto conceito, da parte da maioria dos moradores.
 

Poucos meses após, em 25 de dezembro de 1562, Tibiriçá sucumbiu à peste. Em reconhecimento pela sua bravura e pela sua condição de prócer de São Paulo, foi tumulado na cripta da igreja da sé daquela capital.
 

Dois anos depois, foi Ramalho novamente eleito como vereador, do que declinou, em 15 de fevereiro de 1564 (em vereança), com as alegações de exceder, já, os 70 anos de idade e de estar satisfeito com a vida que levava. Incorporados, os oficiais da câmara dirigiram-se à casa de Luis Martins, onde ele se achava pousado e onde insistiram para que acedesse ao cargo, inutilmente. Regressou, a seguir, para o vale do Paraíba, onde morreu em 1580 ou 1582.
 

Conjecturou-se, controvertidamente, que João Ramalho fosse judeu: os analfabetos (era-lhe o caso) assinavam de cruz: alguém lhes redigia o nome e o próprio desenhava uma cruz entre os seus prenome e sobrenome. Os seus dezenove autógrafos conhecidos contêm sinal na forma de letra "C" invertida, que corresponderia à letra caf, do alfabeto hebraico, em lugar da cruz. Fosse judeu e não seria analfabeto nem teria jurado pelos evangelhos, como fez ao ser investido em cargos públicos.
 

A relação dos padres com João Ramalho foi conflituosa: eles o enxergavam como bruto que andava nu, era polígamo e transgredia os mandamentos cristãos, conforme se lê em suas cartas. Por outro lado, apoiavam-se nele, e sem ele, e sem Tibiriçá, o seu esforço catequizador teria malogrado. Tibiriçá, supostamente chefe de aldeia estabelecida onde existe o Largo de São Bento (na cidade de São Paulo), arregimentou os índios que ali se estabeleceram e foram cristianizados pelos jesuítas.
 

Nas suas Memórias para a História da Capitania de São Vicente, frei Gaspar da Madre de Deus declara haver lido um traslado do testamento de João Ramalho, cujo original fora redigido na vila de São Paulo, em 3 de maio de 1580, pelo tabelião Lourenço Vaz e subscrito pelo juiz ordinário Pedro Dias e por cinco testigos. Nele o testador assere, por duas vezes, contar mais de 90 anos de assistência nesta terra, ou seja, residir no Brasil desde data anterior à de 1490, sem que alguns dos circunstantes lhe advertisse que se enganava, o que certamente fariam se o velho por caduco errasse a conta porque bem sabiam todos que, em 1580, ainda não chegava a 50 a assistência dos portugueses na Capitania de S. Vicente.
 

O testamento, em original, existe.
 

Frei Gaspar prossegue: Depois de habitar neste continente o dito Ramalho casualmente descobriu Pedro Cabral o Brasil, em 1500 [...], com o que explicita a prioridade do primeiro em relação ao segundo, no Brasil.
 

Em livro de vereanças de São Paulo, em data de 15 de fevereiro de 1564, Ramalho afirma não poder aceitar o cargo de vereador, para que fora eleito por ser homem velho que passava de 70 anos, pelo que teria nascido antes de 1494, o que, combinado com a declaração anterior, resulta em que teria emigrado para o Brasil infante.
 

Contudo, um sobrinho (não identificado) de João Teixeira de Carvalho extratou informações do original, em que leu 70 e não 90, o que remete a vinda de Ramalho para 1510. Ao mesmo tempo, uma carta de sesmaria concedida, em 1532, a Pero de Góes, declara achar-se Ramalho no Brasil desde 1517; carta autógrafa de Manoel da Nóbrega, em 1553, comunica haver João Ramalho emigrado cerca de quarenta anos antes, ou seja, em torno de 1513. A leitura do sobrinho de João de Carvalho, a carta fundiária e missiva de Nóbrega infirmam a vinda pré-cabralina do testador que, no entanto, seria perfeitamente admissível, sem tais objeções, à luz dos numerosos indícios de que o Brasil era conhecido pelos portugueses desde antes de 1500.
 

Morreu em 1582, em sítio ignoto, em pleno sertão, anoso de cento e pico anos, possivelmente cento e doze.
 

De João Ramalho, Tomé de Sousa transmitiu a el-rei, em missiva de primeiro de junho de 1553: fiz Capitão dela [da vila de Santo André] a João Ramalho, natural do termo de Coimbra, que Martim Afonso já achou nesta terra quando cá veio. Tem tantos filhos, netos, bisnetos e descendentes dele, q. não ouso de dizer a V.A. não tem cã na cabeça, nem no rosto, e anda nove léguas a pé, antes de jantar [...].
 

Da higidez e vigor de Ramalho, declarou o jesuíta Baltasar Fernandes, em missiva de 1568: Um homem branco que há 60 anos que está nesta terra entre este gentio, que agora é de quase 100 anos [...]. É passo que, aliás, permite quatro ilações:
 

I) a de que Ramalho chegara ao Brasil em 1508, porque 1568 - 60 = 1508.
 

II) a de que em 1508 tinha, de idade, pouco mais ou menos 40 anos, pois em 1568 contava quase um século; chegara há sessenta anos. Ora: 100 - 60 = 40.
 

III) a de que nasceu pouco após 1468, haja vista que em 1568 era quase centenário: 1568 - 100 = 1468.
 

IV) a de que, em 1500, contaria aproximadamente 32 anos, dado que 1500 - 1468 = 32.
 

Em 1580, era em que exarou testamento, vivia, já, cerca de 112 anos ; em 1584 já falecera.
 

Prossegue o missivista que Ramalho sofrera acidente, pelo que o procuraram dois padres, que lhe tomaram confissão e lhe propinaram a comunhão, prova, aliás, da sua cristandade, que infirma a sua pretendida condição de judeu.
Washington Luis julga-o, com visão de conjunto:
 

"Foi, não há dúvida alguma, homem de grande poder de vontade, de suma energia, de muita habilidade; porque um dos primeiros, sendo talvez o primeiro, a chegar a S. Vicente, pode se impor a selvagens broncos e cruéis, dominá-los a ponto de poder dispor de milhares de arcos, ser por eles "venerado, formar um lar, numa terra em que os que vieram depois, e sendo prinicpais da capitania, nele constituiram família. Exerceu todos os primeiros cargos locais da colônia, recebeu das altas autoridades civis da costa do Brasil provas inequívocas de confiança e distinção, e foi julgado pela mais alta autoridade religiosa dessa mesma costa, necessário para o melhor êxito da catequese .
[...]
 

Teve naturalmente muito defeitos, mas também teve as qualidades varonis dos portugueses de sua condição, que naquele tempo viveram. Era de trato difícil, gostava de mandar e estava acostumado a ser obedecico. Grosseiro e tenaz.
 

Cometeu os pecados que naquela época a religião católica considerava gravíssimos, e alguns ainda hoje o são, "a falta de confissão", "não ouvia missa", "amancebou-se na terra", fez as guerras de sua gente contra as tribos inimigas, e, com viver solto e independente, viveu a vida de selvagem, onde só selvagens viviam, alimentando-se de caça e de pesca, de mel e de frutas, sem comércio cristão [...].
 

Foi, porém uma das mais curiosas figuras, talvez a mais curiosa figura da costa do Brasil, nos seus primeiros tempos."
 

Prócer na capitania de São Vicente e, de conseqüência, no Brasil então incipiente, foi cognominado de Patriarca dos Bandeirantes e Patriarca do Campo (por haver fundado Santo André).
 

No final dos 1900 e princípios do século seguinte, integrantes do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo determinaram-se a elucidar melhor a figura de João Ramalho. Pesquisas levadas a cabo em Portugal desmentiram-lhe a condição nobre; do exame das suas assinaturas, nas atas da vila de Santo André, concluiu-se haverem sido escritas por diferentes pessoas, o que lhe revela a condição, trivial, no século 16 e nos seguintes, de alfabeto.
 

Na altura, a cidade de São Paulo estava em crescimento econômico acentuado, graças ao café. Com a aproximação das comemorações do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil, em 1900, os intelectuais paulistas procuraram personagem que lhes simbolizasse o Estado, papel em que não quadrava Pedro Álvares Cabral (em outros Estados considerado o grande personagem do Descobrimento) porque não lá esteve. João Ramalho poderia encarnar tal figura, contra quem depunha certa má fama, difundida pelos jesuítas seus coevos, o que suscitou pesquisas que ensejaram percepção de imagem do conjunto da vida conhecida de João Ramalho, apesar da escassez das fontes. Em 1927, os vereadores de São Paulo homenagearam-no e Bartira, com a atribuição dos seus nomes a duas ruas no bairro Perdizes. Dele descendem incontáveis paulistas e brasileiros quinhentões.

 

 

(enviado em 25/01/19)


Olho nu - Copyright© 2000 / 2019
Todos os direitos reservados.