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Jornal Olho nu - edição N°195 - Fevereiro de 2017 - Ano XVII

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"Eu escolhi você", de Clarice Falcão.

 

Arthur Virmond de Lacerda Neto.
4.I.2017.

 

I- Do que se cuida.

CLARICE FALCÃO - EU ESCOLHI VOCÊ (VÍDEO OFICIAL)

from Junior DeLonge on Vimeo.

 

Da autoria da cantora pernambucana Clarice Falcão, intitula-se “Eu escolhi você” a música que ela lançou em dezembro de 2016, com filme (“clip”, aportuguesável para clipe) de dois minutos e cinqüenta e um segundos de duração, em que se exibem genitálias masculinas e femininas (variamente adereçadas ou desprovidas de adereços), em movimento e livres de qualquer tipo de censura (como tarjas ou dissimulações). Expõem-se pênis, escrotos, pentelhos, nalgas e vaginas e, nos derradeiros segundos, um falo artificial (vibrador).

 

Exposta a filmagem no Youtube por algumas horas (em 20 de dezembro de 2016), recebeu 8.500 curtidas, 2.000 desaprovações, e denúncias, que o levaram a retirá-la do ar. As aprovações excederam mais do que no quádruplo as reprovações. (O filme encontra-se acessível no Vimeo).

 

Postagem de Clarice Falcão, na sua página do Facebook, acerca da singeleza com que produziu o filme, provocou (até o dia 4 de janeiro de 2016) vinte e seis mil curtidas e recebeu 2.301 compartilhamentos, com inúmeros comentários favoráveis (e, excepcionalmente, antagônicos) o que, aliás, era expectável na página que lhe “curtem” e “seguem”, predominantemente, os admiradores e ouvintes.

 

II- A herança cristã.

 

Nem a filmagem nem a letra da música nada contêm de inconveniente. A primeira apenas apresentou partes do corpo tradicionalmente ocultadas, nas sociedades de herança cristã, o que inclui a brasileira.

 

Herança cristã equivale, aqui, a pudor, a vergonha das partes que o filme expôs; à obrigação de velá-las em nome da “moral e dos bons costumes”; a escândalo, em nome das mesmas moral e bons costumes, pela sua exposição, máxime se ostensiva, específica e direta, como foi o caso.

 

Não obstante o aplauso do público ouvinte das músicas de Clarice Falcão, houve reações adversas ao filminho, porque ele contrariou duas convenções parcialmente vigentes no Brasil:

 

1) ele contrariou a convenção da ocultação da genitália, obrigatória no etos cristão (ao menos na sua vertente rigorosa) e cuja infração resultou nas denúncias que lhe motivaram a remoção do Youtube, demonstração, por sua vez: a) de que parcela dos brasileiros acha-se condicionado a enxergar despudor na exposição da genitália; b) de que o Youtube comunga desta vista.

 

As denúncias, por um lado, como a remoção do filme do Youtube, por outro, afiguram-se-me duplamente incompreensíveis, porquanto antes de se aceder às imagens, ao internauta deparava-se aviso de que o filme era inapropriado para menores de 18 anos (restrição, aliás, questionável ). Todos quantos, diante do aviso, acederam ao filme, fizeram-no cônscios de que ele, virtualmente, suscitaria algum tipo de desconforto, consoante a especial sensibilidade do espectador.

 

Diante da advertência de conteúdo potencialmente polêmico, ninguém poderia, honestamente, denunciar o filme a que acedeu porque quis, malgrado o aviso, graças a que poderia abster-se de lhe aceder. Da mesma forma, considero incompreensível que o Youtube removesse-o, apesar da advertência inserida por si próprio. Má política, a do Youtube; comportamento incoerente de quantos, diante da advertência, prosseguiram, escandalizaram-se e denunciaram o filme: não prosseguissem e dado que o fizeram, suportassem, com resignação, as imagens de cujo teor haviam sido advertidos.

 

2) Ele contrariou a convenção da exposição do pênis consoante os cânones artísticos: na pintura e na escultura, consuetudinariamente, representam-se (ou representavam-se) o pênis e o escroto de personagens da antigüidade, reais ou imaginários (deuses, imperadores, anjinhos), porém não se representam em nudez de personagens atuais, identificados ou não.

 

A nudez integral (o que inclui a nudez frontal masculina) foi usual na Grécia e em Roma antigas, em que se representavam despidos os deuses, os imperadores e os atletas.

 

A partir, todavia, do concílio de Trento (1546), a nudez tornou-se rigorosamente proibida no universo católico e se introduziu a censura nas artes plásticas, origem da misofalia (ocultação do pênis), com a aplicação de simulacros (pétreos ou metálicos) de folhas de parreira, na parte correspondente ao falo, que se incrustravam nas estátuas antigas, enquanto na pintura os artistas esmeravam-se em, artificialmente, encobrir o pênis com galhos, braços ou pernas (o que obrigava a representarem-se os personagens em posições inaturais), mantos ou panos (acrescentados com perceptível artificialidade, com intuito exclusivamente misofálico). Nas igrejas protestantes, de vertente evangélica, no Brasil, censura-se, com veemência, a nudez (nudofobia ou pudicícia), a exposição do corpo (somatofobia), do pênis e das mamas.

 

Por efeito da doutrina católica, a convenção artística de matriz greco-romana alterou-se, da liberdade sem malícia nem pudor, para o pudor acentuado e a misofalia sistemática, ao mesmo tempo em que as mentalidades e os costumes transformaram-se em idêntico sentido, ao longo dos últimos cinco séculos de doutrinação cristã, presente na formação do Brasil, desde os primórdios da sua colonização, com a presença dos jesuítas, que se preocuparam com vestir os silvícolas e incutir, neles e não só, a vergonha do corpo.

 

A filmagem de “Eu escolhi você” transgrediu o cânone tridentino da misofalia e a mentalidade pudica da herança cristã.

 

Malgrado Miguel Angelo representasse Davi despido por inteiro, na capela Sixtina os nus pintados pelo próprio foram encobertos, nos seus pênis, por ordem do papa Paulo IV. Toda a arte posterior ao renascimento perseverou na misofalia , de que constitui exemplo insuperável a representação de Jesus crucificado com uma tanga improvisada.

 

Ele foi executado desnudo e não com o pênis encoberto, malgrado o que, todas as suas representações (ortodoxas) figuram-no com pano alvo que lhe oculta o falo e o escroto.

 

Tal representação, irreal, exprime o cânone ortodoxo cristão misofálico por excelência . Ele testemunha, exemplarmente, a mentalidade que o cristianismo professa e que incutiu nas populações que doutrinou e que (consciente ou inconscientemente) por efeito da sua pregação, aprenderam a reputar o pênis como orgão indecente por natureza (juízo, aliás, teologicamente absurdo e estapafúrdio: sendo Jesus deus, ele possuía partes indecentes ? É admissível que o ser perfeito por definição detivesse partes inerentemente obscenas e, por isto, inexoravelmente imperfeitas ?).

 

Eis porque, na sensibilidade cristã, o filme de “Eu escolhi você” afronta a ortodoxia, ao expor o que, para os cristãos “praticantes” e para os indivíduos condicionados pelo etos cristão, impera ocultar.

 

O filminho expôs as genitálias como elas realmente são, com naturalidade, espontaneidade e simplicidade, sem artificialismos nem obscenidade.

 

Por que ele suscitou a animadversão de parte dos brasileiros ? Porque ela, ainda pudica, ainda vetora da herança cristã, aprendeu a associar moralidade e decência com a ocultação da genitália e, a contrario, conjugar-lhe a exposição com imoralidade e indecência, com a premissa de que genitália e mamas correspondem a partes inerentemente indecorosas.

 

A filmagem escandalizou a alguns porque transgrediu o etos, presente nos escandalizados (passe a redundância), de que pênis e clitóris não se expõem; talvez, acessoriamente, alguns (minoritariamente) se hajam chocado com a mensagem da letra, cuja personagem (hipotética) preferiu, por lhe falecer melhor opção, falo artificial, a um verdadeiro (compreendê-lo supõe audição atenta da letra e a sua associação com a exibição do simulacro de pênis, nos derradeiros segundos das imagens.).

 

Fosse pudico o filme; ocultassem, sungas e a peça inferior de maiôs, as genitálias, e a reação teria sido favorável (ou, no mínimo, indiferente) da parte dos seus adversários.

 

III- Censura e intolerância.

 

Três críticos achincalharam a filmagem; fizeram-no com autêntica declamação: o pianista Tom Martins, cujo ataque pareceu-me bombástico na sua forma, artificial no seu teor e inteiramente injusto; outro oponente (em intervenção no espaço de comentários do Youtube) invocou Olavo de Carvalho, o que reputo sintomático: suponho tratar-se de membro da nova-direita, provavelmente católico e possivelmente “olavinho”, arcaizante e pudico em matéria de moral. Por fim, o artigo de Angela Correia serve como exemplo de esforço por desmerecer a qualquer transe.

 

Declamação significa, aqui, discurso artificial, tendencioso, talvez sincero, deputado mais a impressionar e a suscitar pregnância e menos a expor idéias racionalmente e a demonstrá-las convincentemente. Os críticos em causa esforçaram-se por vilipendiar o filme com razão ou sem ela, com senso de proporções ou sem ele, com sentido de realidade ou sem ele. Penso que lhes falecem todos três; ao menos, a mim, não me impressionaram nem me convenceram.

 

Com exceções (notadamente entre jovens) o etos nudofóbico e misofálico acha-se inveterado nos evangélicos que (com exceções) constituem a parte arcaica e retrógrada da sociedade brasileira; também perdura nas gerações mais velhas (talvez nas quadragenárias; provavelmente nas qüinqüagenárias; certamente nas sexagenárias para mais, com exceções.).

 

Velho, de meia idade, jovem, adolescente, homem ou mulher, os evangélicos e os católicos de observância estrita são especialmente infensos à exposição do corpo, e tanto mais hostis a eles quanto mais incultos e mais doutrinados. Deles partiu, presumivelmente, a massa de denúncias que levou o Youtube a remover o filme. Também os integrantes da nova-direita, antagônicos a tudo quanto se dissocie da tradição, dos valores consagrados, da moral cristã, da “família tradicional” (também da repressão sexual ?), tendencialmente desprezaram-no e, provavelmente, também o denunciaram.

 

Denunciar, aqui, equivale, na prática, a censurar: porque eles dele desgostaram, tencionaram impedir que outrem pudesse assistir-lhe, apreciá-lo ou desapreciá-lo, que o mesmo é dizer: vi e não gostei; logo, não quero que os outros possam ver. Censurar, aqui, corresponde a intolerar. Todos os denunciantes foram intolerantes. Tolerância, aqui (e não só) significa: não gosto, porém não impeço nem quero impedir que os demais lhe assistam. Todos os denunciantes foram censuradores, intolerantes e autoritários.

 

Com que direito os denunciantes recusaram assentimento ao filme ? Com o da sua liberdade de juizo estético e moral. Com que direito eles denunciaram ? Em que se fundamenta a legitimidade dos denunciantes para privar a terceiros de assistir o que virtualmente interessa-lhes assistir e possivelmente agrada-lhes ?
Não gosta, não use, porém viva e deixe viver; a sua liberdade termina onde principia a alheia; o dogma da sua religião não pode prevalecer como imposição nem como proibição para todos os demais: em sociedades de liberdades, em pessoas de mentalidade respeitadora da auto-determinação alheia, é óbvio que deva ser assim. Não o foi para o setor intolerante, arcaico, arcaizante, religioso, da sociedade brasileira.

 

Se é opcional para qualquer espectador ou crítico desgostar de qualquer música ou filme que a acompanha, é imperioso manterem-se, como valores básicos da sociedade brasileira, os da liberdade artística e de expressão das produções artísticas. Cada qual as aprecie ou as desaprecie livremente, porém reputo inaceitável que, por conta do desapreço estético ou da censura moral de parte do público, se exerça censura nas artes e se prive a totalidade do público de aceder à arte, ao conhecimento, à informação, à expressão.

 

Não se pode tolerar o intolerante nem admitir a censura, máxime se decorrente de inspiração religiosa, o que equivaleria a teocratizar a sociedade. Respeitem os religiosos a liberdade de quem não comunga das suas convicções; oponha-se, a sociedade aberta e esclarecida, veementemente, a toda forma de compressão das liberdades inofensivas.

 

Será elucidativo efetuar-se inquérito de opinião pública destinado a perceber-se a pertença etária e a filiação religiosa dos opositores do filme. Previsivelmente, confirmar-se-á a dicotomia do público brasileiro: por um lado, católicos de estrita observância (conotados, por exemplo, com Olavo de Carvalho e com a Opus Dei), evangélicos de todas as igrejas e seitas (exceto os adamitas), os mais velhos, os velhos (com exceções em cada categoria).

 

Na banda oposta, a juventude sub-trinta; o público secularizado, de todas as idades; quantos exercem juízo crítico acerca do pudor, entendido como vergonha de certas partes do corpo.

 

Pudicos de um lado e desmaliciosos, de outro; religiosos (com exceções) em face de seculares; jovens (em geral) perante velhos (com exceções).

 

Sim, parte dos brasileiros é retrógrada e arcaica, é pudica e preconceituosa, escandaliza-se com pênis e clitóris. Tanta celeuma por tão pouco !

 

Pouco, para quem aceita a naturalidade de todas as regiões do corpo, não as associa (não necessariamente) com sexualidade; não censura a nudez nem a sexualidade. Celeuma justificável, contudo, para os pudentes, notadamente evangélicos e conservadores em moral.

 

As críticas dizem muito dos criticadores; a receptividade diz muito dos receptivos: as reações (favoráveis ou antagônicas) à filmagem servem como índice de mentalidades.

 

Quando se observa (e lamenta) o atraso do brasileiro em relação a europeus, ele deveras existe no etos do primeiro, ainda permeado de tabus e caretices, na Europa já arcaicas e desusadas.

 

IV- Sinais dos tempos.

 

Em relação à nudez natural, pelo menos a classe média instruída e esclarecida, jovem e laica, vem, crescentemente, abandonando os (des)valores da (nisto, pelo menos, perniciosa) herança cristã; vem recobrando os valores greco-romanos; vem substituindo a moral teológica pela humanista (laica), de que um aspecto corresponde à aceitação do corpo sem pejo e a aceitação da exposição de qualquer das suas partes sem escândalo nem malícia.
No teatro brasileiro é, já, usual a nudez; recentemente, alguns fotógrafos vêm fotografando (para publicar em livros) nudez natural ; em Curitiba, Porto Alegre e alhures, houve nudistas em público. Antonio da Silva realizou filmagem de poesia em pênis. Na Universidade Federal da Bahia houve uma (ao menos) aula ao ar livre, com nudez integral opcional, em setembro de 2015. Surge, agora, “Eu escolhi você”, inédito nas imagens do filme que a apresenta e pioneiro no tipo de imagens que exibe.

 

São sinais dos tempos. Todo sinal dos tempos é, também, sinal do final dos tempos, vale dizer (para exprimir-me denotativamente), os sinais constituem indícios de transmutação do etos, correspondem a sintomas de que os usos, as mentalidades, os valores se vão transformando e de que novas formas de ser, de estar, de atuar e de reagir despontam e afirmam-se.

 

O filminho de “Eu escolhi você” representa sinal deste tempo, da secularização das mentalidades, da descaretização do corpo, da erradicação do pudor (como vergonha das partes estigmatizadas pela herança cristã), da substituição dos padrões e valores de matriz bíblica pelos de matriz humana (assinalados, também, no Brasil, pelo aumento do ateísmo e pelo esvaziamento da igreja católica. ).

 

Por excelência, há dois tabus na pregação cristã e conservadora: casamento homossexual e exposição das partes por ela qualificada de “vergonhosas”. O filme tocou precisamente em melindroso tabu para cerca de vinte milhões de brasileiros culturalmente toscos e, por isto, colonizados pelo evangelismo.
Hostilizou a filmagem de “Eu escolhi você” presumivelmente a parcela dos brasileiros adesa ao passado, a valores em extinção, à retaguarda dos costumes, à incultura, à teologia, à repressão sexual, ao evangelismo e ao catolicismo (com exceções).

 

V- Apoios.

 

Por outro lado, Clarice Falcão recebeu (pelo que se observa na sua página do Facebook) muitas centenas de apoios, demonstração reconfortadora de que, se em 2016, ainda há retardatários mentalmente instalados em cem ou dois mil anos atrás, há gente de mente aberta. Saúdo-os e com eles me alinho.
Quem aceitou o filme (sem, necessariamente, haver se deliciado com as suas letra e música) inclui-se na parcela do público de mentalidade moderna, despreconceituosa, provavelmente jovem na sua maioria e certamente secular no seu quadro axiológico.

 

Na Europa, cujas populações, em geral, aceitam com naturalidade o corpo e a nudez, o filme não teria desencadeado a hostilidade que provocou aqui. Lá, ele teria sido criticado pela sua sensaboria: na Europa, em geral, genitálias e corpos expostos não escandalizam. Afeito a praias e campos de nudismo, à nudez doméstica, em família (há “famílias tradicionais nudistas”), o europeu e, também (parcialmente) o norte-americano abandonaram, a décadas e gerações, a associação entre moralidade e velamento do corpo, e a distinção entre partes apresentáveis e indecorosas do corpo, no que se designa por nudismo, naturismo, cultura do corpo livre (em alemão, freiköperkultur, abreviado por F.K.K.).

 

VI- Avaliação.

 

Divertiram-me a letra e a música de “Eu escolhi você”.

 

Reconheço mérito na simplicidade do filme no sentido de que, sem efeitos especiais, sem despesas de realização, com materiais baratos e banais, e com pessoas comuns, ele despertou a atençaõ que outros logram mercê de sofisticação e dispêndio. O singelo também atrai; ao menos, atraiu.

 

Era-lhe suposta sofisticação ? Não. Era-lhe imperioso brilhantismo de imagens ? Tampouco. Não se achincalhe o filme pela acusação de pobreza cênica: as imagens exploraram com inocência e graça as partes em que se focaram, sem sexualidade, sem exibicionismo, sem pornografia.

 

Reconheço mérito nas imagens pois elas exibem partes do corpo humano, com naturalidade, sem embelezamentos artificiais, sem tratamento eletrônico de imagens, sem artificialidade.

 

Reconheço-lhe, notadamente, o valor de contribuir para a erradicação do juízo especioso de que há, no corpo humano, partes pudendas; de que pênis e clitóris e nalgas são inapresentáveis, motivo de vergonha e devem ser ocultadas.

 

Quem assistiu às imagens, viu pênis, pentelhos, escrotos, vaginas, clitóris, nalgas. Viu o corpo humano.

 

Quem nele vislumbrou indecência, impudor, imoralidade, é porque foi condicionado desta forma. A malícia, a indecência, a imoralidade, o atentado ao pudor, o perigo para o futuro das crianças deste país, à família tradicional, aos valores cristãos, correspondem a fantasias que os fantasiosos projetam no que é natural e inocente. Ao corpo humano são inerentes a naturalidade e a inocência, ao passo que a malícia e a vergonha do corpo foram culturalmente construídas: foram-no pelo cristianismo. Daí a natural hostilidade dos cristãos e a receptividade dos laicos ao que é natural.

 

As imagens são feias porque exibem pelos, pênis, clitóris ? Mas o corpo humano é assim; a maior parte das pessoas é assim, nós somos assim. As imagens constituem amostras do que e de como as pessoas comuns são.

 

Na nudez artística, o corpo acha-se idealizado. Normalmente, ele é representado depilado, esbelto, musculoso, vistoso, vale dizer, embelezado. Estátuas de deuses, de imperadores romanos, o Davi de Miguel Angelo, os nus da capela Sixtina não representam os corpos como eles comumente são ou eram, diferentemente do filme que exibe, não a convenção estética, senão a realidade dos corpos comuns. Imperadores romanos, deuses, Davi, os corpos da estatuária antiga, dos pratos gregos, da arte em geral, representam homens esbeltos, vistosos, musculosos, e mulheres brancas, destituídas de flacidez, de estrias, de adiposidades. Em suma, nos casos masculino e feminino, corpos dotados de algum grau de artificialidade.

 

A mensagem visual do filminho consiste na de que tudo, no corpo, é natural e apresentável. Se todos os brasileiros entendessem assim, havê-lo-iam recebido sem hostilidade e haveriam julgado as imagens pelo seu valor de realização artística, exclusivamente, a música pela sua sonoridade e a letra pelo seu conteúdo. Foi como o recebeu a parte esclarecida dos brasileiros.

 

A letra, penso, é divertida e descontraída. Não se exija de música popular profundidade filosófica própria de eruditos. Não se amesquinhe a letra por não conter o que não era suposto que contivesse. Desvalem-lhe, neste particular, as críticas declamatórias (e talvez hipócritas).

 

Verberem o quanto verberarem o filme, as suas imagens, a letra e a música, com sofisticação intelectual (o que não necessariamente equivale a bons argumentos nem a sensatez) ou com grosseria e baixeza (em que abundam os comentários nas redes sociais e não só), o filme suscitou alguma contrariedade porque e quase exclusivamente porque parte dos brasileiros é, sim, misofálica (misofalia significa a recusa da exposição do pênis) e somatofóbica (somatofobia significa a recusa da exposição do corpo, no caso, da genitália e das nádegas); porque ainda há gente arcaica e arcaizante, intolerante e censora da arte.

 

Por outro lado, o filme suscitou apoios, atraiu a atenção de incontáveis ouvintes, tornou-se momentoso, criou com ineditismo, demonstrou que a simplicidade cenográfica pode ser altamente exitosa e (o que julgo cardeal) contribuiu para a percepção da inocência da nudez, notadamente das partes ainda (em parte) objeto de tabu.

 

Ele presta significativo serviço em prol da descaretização do corpo, da afirmação da moralidade de matriz humana, da erradicação do conceito (estúpido) de que o corpo contém regiões indecorosas.

 

VII- Crítica da moral pudica.

 

Quem o assiste, observa as partes do corpo demonizadas pela religião e nelas enxerga nada mais do que orgãos presentes em todos os humanos, que nos constituem a anatomia como outras partes quaisquer do corpo. Ele exibe orgãos estigmatizados por doutrinas irracionais e por costumes tolos, com a mesma naturalidade com que se exibem, em todos os momentos e ubiquamente as mãos e as orelhas, e mais as pernas e os pés (em dias e regiões quentes). Ele iguala as partes falsamente indecorosas às decorosas e permite a conclusão, tão simples e tão óbvia, de que todo o corpo é igualmente digno e que a repugnância moral dirigida ao que ele focaliza não se justifica por critérios de base racional e humana.

 

Deveras, que mal há na focalização das partes em questão ? Nenhum. Se alguém lho imputa, fá-lo por efeito, direto ou indireto, da interpretação da lenda de Adão e Eva (personagens evidentemente fictícios); pela interpretação contestada no seio do próprio cristianismo (pelas correntes admitas ) de que a Bíblia censura a nudez; pela insistência secular das igrejas na necessidade supostamente moral da ocultação das genitália feminina e masculina, e das mamas.

 

A superstição do pudor (entendido como vergonha do corpo) provém, diretamente, do cristianismo, com base em livro cujo texto não adveio de revelação, não resultou do sobrenatural, sujeita-se a interpretações várias e discrepantes, constitui literatura e não pode fundamentar preceitos, proibições nem convicções acima da racionalidade humana.

 

O filminho de “Eu escolhi você”, se exprime transgressão (em face das proibições da moral conservadora e do cristianismo) exprime, ainda mais, libertação do modelo mental pudico e afirmação de outra atitude e de outros valores perante a vida e o próprio corpo:

 

1) a atitude de que o natural não deve envergonhar (naturalia non sunt turpia, diziam os antigos);

2) os valores da inocência do corpo e da liberdade artística, fora de censura religiosa;

3) a atitude de que as partes empregadas, também, na atividade sexual não devem, por isto mesmo, ser estigmatizadas, porém encaradas com normalidade, com a mesma normalidade já reconhecida (pelas mentes esclarecidas) sem culpa nem tabu nem reservas, à própria sexualidade.

 

Tudo isto é óbvio na perspectiva humanista; é chocante na tradição cristã ortodoxa (com matizes, consoante o grau de abertura do fiel). Livremo-nos da segunda e adotemos, convictamente, a primeira.

 

O filminho constitui achega (que se soma às peças teatrais com nudez, aos fotógrafos que vem fotografando nus e publicando-os em álbuns) para fora de valores irracionais (de raiz bíblica) e para dentro de mentalidades e costumes humanamente justificáveis.

 

Em suma, à luz do seu enquadramento no etos e nos costumes, imagens e letra representam, pela sua própria existência e pela receptividade que granjearam sintomas de que declinam os constrangimentos da religião e de que o natural e o inocente afirmam-se como tal.

 

VIII- Excurso.

 

Outra evidência do tabu e do pudor persistentes, nos brasileiros, a propósito da genitália, manifesta-se na forma vulgar e até chula como muitas pessoas se referem às respectivas partes: por vozes como xereca, pepeu, piupiu, bumbum, bingolinho, peidola, buça, cacete, xana, pepeca, pau, boceta, perereca.

 

Tal acervo léxico funciona como sucedâneo lingüístico por que se evita designar as partes pelos seus nomes próprios: pênis, falo ou pinto; clitóris; vulva, vagina; nádegas, nalgas ou bunda.

 

É típico de muitos brasileiros empregar termos substitutos para o que a "moral (cristã), os bons costumes e o futuro das crianças deste país" impede que se nomine abertamente, pelos substantivos próprios.

 

Por mais que haja liberdade de costumes e instrução sexual nas escolas; por mais que haja (e ainda bem) abertura em prol do conhecimento da anatomia e da fisiologia do corpo, dos cuidados sanitários, da contracepção, em cotejo com décadas transactas, pênis e vagina correspondem a vocábulos a que os acusadores do filme, em geral, preferiram os substitutos que mencionei, todos plebeísmos e alguns bastante chulos.

 

É sintomático que (com exceções) os oponentes do filme empregassem vulgarismos, ao invés de se referirem ao pênis e à vagina por estes substantivos. Cometeram dissonância cognitiva ? Cometeram a ironia de chocarem com vulgaridades nas diatribes em que acusavam o filme de vulgaridade ? Ignoram os termos pênis, falo, nádegas, vagina ? São pudicos e, por isto, inibem-se de proferir tais termos ? Estão acostumados aos plebeísmos ao ponto em que somente a eles sabem utilizar ? Tudo isto mesclado, em diferentes proporções ?

 

No mínimo, quem verberou o filme por “vulgaridade” evitasse vulgarismos: fosse coerente, ao invés de cuspir para cima.

 

(enviado em 17/01/17 por Arthur de Lacerda)


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