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Jornal Olho nu - edição N°161 - Abril de 2014 - Ano XIV

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Republicação da matéria apresentada originalmente na seção "NATArtigo" do jornal OLHO NU edição de março de 2014

Abricó, praia livre?...

por Paulo Pereira*

 

Li a matéria escrita por Cibelle Brito (InfoGlobo) focalizando aspectos da frequência na praia do Abricó-Grumari, e concordo que há controvérsias, muitas controvérsias. A curiosidade existe, sempre existiu e esperamos que nunca morra, pois é a base primeira do conhecimento, mas realmente há transbordamentos, sobretudo, de comportamento, em geral, que pedem um olhar mais atento, perceptivo, especialmente no que se refere à nudez, à nudez ainda tida como tabu por grande parte da humanidade. Curiosidade é bem diferente de comportamento inadequado, agressivo. Muita gente já disse, e eu ratifico com ênfase, que se não fosse pela nudez, pela prática nudista, o proclamado “naturismo” pouco importaria de fato. O nu é o foco. E, com a nudez, o sexo, o mito, o preconceito, o pecado, e, por certo, a transgressão... É surrealista falar de “naturismo” sem falar de “nudismo”, de nudez sem sexualidade, do que se entende por natural confundido com o cultural.

 

O “problema” do Abricó não é propriamente o centenário “naturismo”, mas o corpo nu, ainda eleito por muitos como sítio do exótico, do impuro, do pecaminoso. Então, falar de Nudismo-Naturismo é, por certo, considerar, antes, a natureza, e procurar ver a paisagem do Abricó como natural, apenas natural, talvez sublinhando o sábio dizer do mestre William Welby, que proclamou, como já destaquei uma dezena de vezes, que a filosofia do naturismo-nudismo é apenas Natural! Ponto. E eu sempre acrescento o exemplo rico e eloquente dos índios, dos “homens naturais”, de resto nus na natureza, a nudez como dado primeiro, como quer R. Muraro. Mas a chamada “sociedade vestida”, vestida sempre, até de intolerâncias e de violências, busca enxergar de forma conveniente o que é apenas natural, para lucro e poder; talvez, até por isso, sem qualquer simplismo, a nudez como tabu, a nudez perseguida, castigada (como disse Nelson Rodrigues), o nu ultrajado dos campos de concentração, o nu (nudista-naturista) como pretexto. São verdades do bicho-homem, esse primata paradoxal, mortal e cruel, mas sempre pregando a eternidade, o poder angelical, a hipocrisia das meias-verdades...

 

Para quem, como pioneiro, conhece e frequenta o Grumari-Abricó, desde 1964, como eu, participando, inclusive, ativamente, ao lado de um grupo batalhador liderado pelo amigo Pedro Ricardo, da luta pela “oficialização” da praia do Abricó, como reduto nudista-naturista, embora com saudades de um tempo menos tumultuado, não é cômodo verificar que, mesmo depois de mais de vinte anos, os problemas quase não mudaram, ou mudaram até para pior... Vale observar, mesmo que de passagem, e até para evitar polêmicas vazias, que é indispensável procurar entender, inclusive no prestígio da Lei, que há concretas diferenças entre um clube naturista e uma praia naturista, sobretudo, sabendo-se que as praias no Brasil são legalmente espaços públicos e, dessa forma, sujeitos à autoridade do Estado, o que coloca o Estado (no caso, o Município) como responsável pelo respeito à Lei, pela segurança e livre trânsito das pessoas, dos frequentadores e, certamente, pelo policiamento da área, de forma efetiva, coibindo crimes e extravagâncias, afinal. Mas onde estão os agentes do Poder Público?

 

Se ocorrem abusos no Abricó, contra os naturistas ou não, cabe às autoridades cumprir e fazer cumprir as leis, fazendo com que a frequência no Abricó seja serena, sem violências. Quanto aos fundamentos histórico-filosóficos do Nudismo-Naturismo, por exemplo, não há respaldo concreto para falarmos em “nudez obrigatória” e “nudez opcional”... O conceito internacional de “praia livre” não prestigia essa dita dicotomia; a praia livre, o nome já diz, é um espaço de livre trânsito, onde efetivamente você pode estar despido, ao natural, o que é um tanto diferente de “praia naturista”, conceito que se aplicaria melhor a um espaço restrito, até particular. A nudez é nosso traje de nascença, e, como tal, não pode ser chamada (a nudez) de opcional ou obrigatória, mas apenas de natural. Os costumes e as culturas não servem para definir cientificamente o corpo, a nudez ou o sexo, embora possam, na prática, circunscrevê-los dentro de parâmetros convencionados. A pergunta, então, talvez fosse essa: alguns afoitos, com a negligência do Poder Público, querem transformar a praia do Abricó (livre ou naturista) numa “zona franca” de sexo e violência? Até quando?... A nudez não espera; a nudez não tem dia marcado... A nudez é nossa verdade natural, do berço ao túmulo, até que Deus, talvez, queira mudar. A praia do Abricó tem história antiga, e rica, e merece ser, de fato, um lugar de liberdade sem medo, sem crimes, sem imposições, sem censuras, do jeito que a natureza quer.

 

A prática nudista-naturista precisa ser, anotemos, também pedagógica, educar para uma vida melhor, com boa informação, sem intolerâncias, com efetivo conhecimento. Ser bom nudista-naturista é também dar o bom exemplo, sem delírios utópicos, sem eleger, quem sabe, pudores místicos. Ser nudista-naturista é assumir sua verdade natural, com respeito. A praia do Abricó é um solo de libertação, de cidadania plena, de nudez natural. Ponto. Nudez é vida... E, se é vida, vida plena, é para ser experimentada com naturalidade, sem violências, sem censuras, sem pretextos e sem arbitrariedade. A sociedade dita vestida é, sobretudo, repressora e a repressão, geralmente irracional, conduz ao sofrimento e à ânsia de transgressão, de libertação. O vestir compulsório agride a dignidade natural do corpo e pode resultar em comportamentos inadequados, inconvenientes, e até obsessivos. Nudez e sexo reprimidos, desde a infância, com falsos pudores, acabam em transbordamentos. Mas o naturismo não pode (nem deve) pagar a conta...

 

Ao finalizar, recordo o que escrevi recentemente a respeito de sanção, de castigo, no meu artigo “Vida e Castigo”, aqui no Jornal Olho Nu, comentando o pensamento do mestre Jean-Marie Guyau, o filósofo da vida. Recordo que eu disse que cada época tem seu crepúsculo, sua semiescuridão, a tornar difícil a percepção da claridade das verdades naturais. Como Guyau, parece-me um contrassenso afirmar leis racionais como regras naturais e universais... A verdade moral não deve ser construída sobre recompensas ou castigos; as leis naturais sempre valem por si mesmas. Nudez e sexo não estão sujeitos, a rigor, a uma moral puramente racional, cultural, mas ao livre fluxo do equilíbrio natural, ao bom-senso inteligente, num culto sereno da liberdade sem medos. O natural é inviolável... Vivamos integralmente, sem elucubrações, como a natureza indomável quer, sempre naturalmente, despidos de corpo e alma, mas sem utopias delirantes. É indispensável, enfatizo, separarmos o joio do trigo, o natural do cultural, o sadio do doentio. Os que vão à praia do Abricó para exibicionismo, para agressões, para sexo explícito ou para perturbar os nudistas-naturistas positivamente não são meros curiosos e, na ausência do Poder Público, estão criando desordem e denegrindo o renome do nudismo-naturismo, ainda que indiretamente. É tempo de agir e mudar.

 

Em tempo: Zuenir Ventura, sempre talentoso e bem informado, nos fala das chamadas tribos violentas (“O Globo” – 15/02/2014) e certamente nos convida a uma profunda reflexão. Como nos diz Zuenir, são cada vez mais visíveis os sinais dos comportamentos desviantes e agressivos. Ocorre frequentemente, sobretudo, que algumas minorias acabem atacando outras minorias, uma luta de grupos contra grupos, uma busca insana sempre por espaço e poder. Zuenir, atento, comenta: “Em São Paulo, no mês passado, seis deles confessaram à polícia ter espancado até a morte Bruno Borges, de 18 anos, por ser gay... No Rio, dois episódios de violência juvenil chamaram à atenção. No primeiro, agressores prenderam pelo pescoço, num poste, um assaltante de 15 anos, depois de espancá-lo e deixá-lo ferido e nu”... Ferido e nu, notemos bem, completamente nu, objetivamente indefeso, mais uma vez a nudez ultrajada. É bom pensar bastante a esse respeito! A nudez como perda de identidade? O indivíduo reduzido a um mero número para uma possível estatística burocrática? Zuenir, observador, conclui: “São tribos, e cada tribo é uma categoria à parte, com hábitos particulares e uma cultura própria. O que as une é o gosto pelo vandalismo e a transgressão”. Agressão e desobediência, afinal. Façamos, então, uma leitura serena de todas essas questões. A violência, em qualquer de suas formas, e a transgressão, a derrubada de limites... No Abricó, parece evidente, falta a presença do Poder Púbico, falta uma melhor estrutura geral, mas parece que andam sobrando os comportamentos desviantes e, sobretudo, o desconhecimento, por parte de alguns afoitos, das verdadeiras essências histórico-filosóficas do Movimento, desde Ungewitter.

 

Parece-me importante que os nudistas-naturistas procurem, se possível, ler mais e melhor, buscando as boas sínteses, as corretas construções, sem casuísmos, sem desculpas, sem aceitação do arbítrio e da descaracterização da filosofia nudista-naturista centenária. Digo tudo isso com muita tranquilidade, sem quaisquer arrogâncias, sem teimosias utópicas, mas com a experiência que o tempo me conferiu, querendo apenas somar, sem medo. Concluindo, enfatizo o que foi sabiamente proclamado por C. Obergfell, que afirmou que o nudismo-naturismo só será grandioso e sereno quando prestigiar integralmente suas raízes, quer dizer: quando for apenas natural, fraterno, laico, sem a invencionice de nudez opcional e nudez obrigatória, e sem fazer da nudez um mero pretexto para vícios e violências. Recordemos, afinal, que os tempos mudaram e a nudez já está cansada de ser castigada. Precisamos de cidadania e bom senso, sempre.

 

Paulo Pereira

Escritor, tradutor, biólogo,

o naturista mais antigo do Brasil.

Membro do conselho Consultivo da FBrN

 

(enviado em 20/02/14)


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