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Jornal Olho nu - edição N°157 - Dezembro de 2013 - Ano XIV

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A partir deste ponto republicação das matérias apresentadas originalmente na seção "Últimas Notícias" do jornal OLHO NU,  entre 1 e 30 de novembro de 2013

Vida e Castigo

por Paulo Pereira*

 

Antes que sejamos todos meio engolfados pela balbúrdia das festas de fim de ano, penso que talvez seja oportuno, e proveitoso, um pouco de reflexão sobre a vida, sobretudo, a vida humana e os castigos, as punições, as intolerâncias, os egoísmos culturais.

 

Faço, então, breve releitura das palavras e pensamentos do notável e corajoso mestre Jean-Marie Guyau, especificamente do que está escrito em sua “Crítica da Ideia de Sanção”, Editora Martins Fontes. Já no dizer de Regina Schöpke, Guyau é um filósofo da vida, da vida sem censuras prévias, eu diria.

 

É sem dúvida preciosa e pertinente a referência de Regina, de início, ao pensamento de Nietzche de que “alguns homens nascem póstumos”, quer dizer, que são homens um tanto premonitórios, muito à frente de seu tempo, talvez por isso meio ou totalmente incompreendidos. Isso me faz pensar, de pronto, entre outros indivíduos, em Thomas Edward Lawrence (Lawrence da Arábia) e em Dora Vivacqua, a Luz Del Fuego. Mas a vida não é vivida necessariamente para agradar ou desagradar, para premiar ou punir. A ideia de sansão é para ser percebida, e rejeitada, como colocou Guyau, o chamado “filósofo da vida”.

 

Cada época tem seu crepúsculo, sua semiescuridão, a tornar difícil a percepção da claridade das verdades naturais, por exemplo. É importante, enfatizo, entender e cultivar, sem pretextos, um grande amor pela vida, pela nossa realidade primeira e última. Parece irrecorrível admitirmos que tudo que é humano nos deve interessar... Nudez e sexo são vida!

 

A ideia de Guyau a respeito da moral é, anotemos, original e direta: é a noção de moral sem sanção, sem castigos e sem recompensas, como destaca Regina Schöpke. Para Guyau, não há, pois, uma lei moral transcendente, universal, válida para todos os tempos e para todas as sociedades, observa Regina. Guyau julga um contrassenso afirmar leis nacionais como regras naturais e universais. As leis naturais valem por si mesmas, são invioláveis em última análise, independentemente das preferências e julgamentos humanos. E, até por isso, como biólogo e naturista (ou nudista), valorizo a vida natural em tom maior, “sem pedir julgamentos, conforme a natureza”... O homem, como coloca Guyau, ser natural, jamais poderá violar concretamente uma lei natural, ou então ela não seria uma lei natural... Guyau nos alerta, corajoso e preciso, de que “não devemos nos deixar enganar por uma moral que acredita que a natureza castiga e que o homem e Deus apenas se encarregam de completar a tarefa”. Para Guyau e Nietzche, salienta Regina, a natureza é amoral, conceito também abraçado pela Ciência, pela Biologia moderna, por exemplo, e que eu particularmente ratifico, aceito...

 

A natureza não pede julgamentos, costumo colocar sempre. A natureza não elucubra nada de moral, ela não é boa nem má, mas apenas indiferente, autossuficiente, como já nos disse o biólogo Richard Dawkins. Regina anota que “é claro que aqueles que se afastam de seus instintos mais básicos sofrem as consequências, mas isso não ocorre de modo matemático nem por causa de alguma determinação divina ou racional; é uma lei simples de ação e reação; come-se muito, passa-se mal”... Para Guyau, afinal, a questão da punição é inútil, pois é impossível quantificar um dano moral, enfatiza Regina. É mister, parece-me, buscar a realidade, a verdade natural, os verdadeiros valores humanos. A natureza se basta e não castiga ninguém, e a vida é um processo natural que não depende da vontade limitada do homem. Guyau sugere que os nossos erros, sempre repetidos, só podem ser corrigidos pela obediência aos impulsos naturais, às necessidades da vida social, e não por uma obrigação mística. Ambição e egoísmo, assim como agressividade (como nos diz Desmond Morris em “O Macaco Nu”), são atitudes naturais do bicho-homem, que certamente devem ser melhor conhecidos e considerados, mas nunca rejeitados como demoníacos...

 

Regina Schöpke destaca que, para Nietsche, o homem é um animal adoecido, um animal que luta contra seus instintos e contra a própria vida, enquanto Guyau sugere que o mais importante seria, então, afirmar “o humano” em todos nós. Para Regina, Guyau e Nietsche se tocam, ambos escritores e poetas, criadores de beleza. E de um convite irresistível à reflexão, acrescento. Bergson, por exemplo, nos lembra (inclusive a respeito de Guyau) que é preciso sempre “intuir” sua alma (a nossa alma) para tentar entender suas ideias (as nossas ideias). Mas pouca gente sabe ou se dispõe a intuir: só enxergam o próprio umbigo.

 

O vício e a virtude, afinal, o chamado bem e o dito mal, vida e castigo?... A nudez deve ser castigada? O conceito de nu do termo “nudismo” incomoda?... A nudez, dado primeiro e natural no dizer sábio de Rose-Marie Muraro, é objeto ou sinônimo de pecado, de pornografia? Até quando? Não se trata de afirmação ou de convicção vigorosa, mas, sim, de reflexão serenamente proposta.

 

Guyau anota que a ideia de sanção (de castigo) é um dos princípios da moral humana, ligada (essa ideia) aos fundamentos de todas as religiões; e que a religião consiste essencialmente na crença de que existe uma sansão metafisicamente ligada a todo ato moral. Mas a natureza, observemos, não julga nem castiga. Guyau, definitivo, arremata: “A natureza não pune ninguém e não tem ninguém para punir, pela simples razão de que não existe verdadeiro culpado contra ela; não se viola uma lei natural, ou não seria uma lei natural. A pretensa violação de uma lei da natureza nunca é mais do que uma verificação, uma demonstração visível desta. A natureza é um grande mecanismo sempre em movimento, que o querer do indivíduo não poderia, nem por um instante, entravar... Ser ou não ser, ela não conhece outro castigo nem outra recompensa”... É importante não procurar ver, ou propagar, castigos na natureza; a nudez não é pornográfica nem demoníaca, e sexo não é sujo nem imoral. A filosofia do Nudismo-Naturismo é apenas natural, como diz William Welby. Eu apenas anoto, e proponho uma boa reflexão: há sentido em pensar a vida cheia de castigos? Termino citando novamente o notável Jean-Marie Guyau: “A moralidade deve, a priori, ter consequências passionais?... A verdade, acreditamos, é que, de modo nenhum, percebemos uma razão puramente “a priori” para juntar um prazer sensível a uma intenção que, por hipótese, seria exclusivamente suprassensível e absolutamente heterogênea à natureza”. Anoto e subscrevo. É inteligente não elucubrar demais, imaginando transgressões onde só há vida. Todos nós nascemos nus...

 

Em tempo: reflitamos serena e profundamente, então, a respeito das censuras e das sansões, pois a mãe natureza jamais evidenciou falsos pudores nem vestiu ninguém. É mister não criarmos nem alimentarmos supostas crises. Não há concretamente crises na natureza, e muito menos a respeito da nudez humana, natural por sua essência, que jamais pode ser sítio de preconceitos ou de delírios pudicos, convenientes. Assim como a natureza, as artes em geral (a literatura incluída) não pedem nunca quaisquer sansões. A quem interessariam as mencionadas crises construídas? Com certeza aos “príncipes de Maquiavel”... O homem, de corpo e mente sadios, não é objetivamente “dono” do planeta Terra nem das verdades naturais.

 

Na página “Opinião”, de “O Globo”, 10/11/2013, o consagrado escritor Veríssimo nos brinda com várias considerações importantes e oportunas, sob o título de “Degenerados”... Veríssimo comenta, sagaz, o desaparecimento e a recente descoberta de obras de arte roubadas pelos nazistas (então liderados por Adolf Hitler, o psicopata do Terceiro Reich, príncipe negro das crises elaboradas) durante os anos de trevas da guerra. Falando das obras pilhadas, Veríssimo assinala: “Elas são obviamente produto da pilhagem de museus e de coleções privadas dos territórios invadidos pelos nazistas durante a guerra. Elas estavam no apartamento de um descendente de Hildebrand Gurlitt, que, apesar de ser judeu, foi escolhido Goebbels (o homem da propaganda nazista) para avaliar e ajudar a vender os quadros, e era, legalmente, o dono do tesouro”... Legalmente?... O velho Gurlitt, judeu, foi objetivamente cúmplice dos algozes nazistas, certamente, porque, oportunista e inescrupuloso, só visava proveitos pessoais. Essa “doença” humana é, pois, antiga e recorrente, embora frequentemente meio oculta. Hitler, muito astuto, chamava essa arte, esses quadros famosos, de “arte degenerada”, querendo até que ela fosse ignorada, destruída, ou eventualmente vendida para obtenção de fundos para a megalomania do Terceiro Reich. O notável Veríssimo arremata: “Ainda existem milhares de obras de arte desaparecidas na guerra, das quais não se tem notícia. Mas aos poucos elas reaparecem. Arte é difícil de matar, inclusive a degenerada”... Eis aí uma bela reflexão!

 

Veríssimo nos propões considerar, sobretudo, a inquietante mente humana e, de passagem, a história não tão distante. A Arte, assim como a Ciência, e as Verdades Naturais, por exemplo, são concretamente difíceis de matar, mesmo que alguns incontidos continuem sofismando, utilizando elucubrações pobres, e até provocando querelas destrutivas ou atos de violência. Nesses nossos tempos um tanto artificiais, sobretudo, creio que uma séria reflexão se impõe, até porque, por exemplo, sem raízes firmes não há árvore que resista de pé, a menos que seja um mero artesanato, uma plantinha artificial. É preciso que se leve em alta conta, infelizmente, a atuação de insones iconoclastas, que estão sempre ativos, buscando desconstruir obras e vidas alheias, incansáveis sempre na tentativa de apagar evidências, de desacreditar conceitos, fundamentos e definições, buscando acabar com símbolos e monumentos julgados incômodos. Mas não há “arte degenerada”, não há “instintos deletérios”, não há “nudez degenerada ou demoníaca”, não há “sexo sinônimo de porcaria”... A natureza nua é dado primeiro e último, repito. Precisamos repensar serenamente essa questão da intolerância e das desconstruções egoístas, das sansões e dos castigos, como possível solução moral. Quem tem medo da História? Quem tem medo da Ciência e da natureza nua? Quem tem medo do conhecimentos, afinal? Estamos cientes plenamente de nossos limites como seres humanos? Penso que é melhor refletir, estudar, até eventualmente duvidar, em vez de alimentar convicções radicais. A crítica à ideia de sansão pode inclusive nos fazer considerar uma boa pergunta: somos cientificamente primatas racionais que tendem a se imaginar como anjos? A nossa prioridade consciente deve ser procurar viver plenamente, sem inventar culpas e divisões. A natureza nua nos convida à busca do equilíbrio, da vida sem amarras.

 

Paulo Pereira

Novembro/ 2013

Escritor, tradutor, biólogo,

o naturista mais antigo do Brasil.

Membro do conselho Consultivo da FBrN


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