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Jornal Olho nu - edição N°146 - Janeiro de 2013 - Ano XIII

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Sobre o direito de estar nu

(Nudez, Obscenidade e Direito Penal)

 

por Antonio Januzzi M. de Godoi

 

O crime de ato obsceno, previsto no art. 233, do Código Penal brasileiro, descreve a conduta de “praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público” e comina pena de detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano (ou multa), para o seu agente. Mas o tipo penal não descreve em que consiste, exatamente, o “ato obsceno”. A interpretação sobre a obscenidade do ato é deixada ao destinatário da norma, a quem cabe avaliar o seu significado com referência à ordem de valores vigente na comunidade. De acordo com a interpretação dos tribunais, no entanto, obsceno é o ato praticado com lubricidade, conotação sexual evidente e ofensiva do pudor coletivo.

 

A obscenidade no comportamento de alguém pode se materializar por formas diversas: o sexo, a auto-satisfação, o exibicionismo, o streaking, ou até o desaperto das necessidades fisiológicas, em local público ou acessível ao público. Em todas elas, entende-se haver uma ofensa ao sentimento de médio de moralidade da comunidade. É esse o fundamento teórico que legitima, no plano formal, a tipificação do delito.

 

Materialmente, no entanto, a incriminação de uma conduta cuja ofensividade se resume a uma dimensão moral não pode se justificar racionalmente. Pelo menos, não em uma ordem jurídica construída sobre os fundamentos do Estado Democrático de Direito, em que o respeito pela livre conformação moral do indivíduo é uma garantia e o direito de expressar livremente qualquer espécie de convicção (sobretudo de natureza moral) deve ser assegurado em termos amplos, incondicionáveis ao teor de seu conteúdo.

 

Ainda que a visão de um corpo humano nu, em local de acesso público, possa ofender ou causar desconforto, é evidentemente ilegítima a intervenção do direito penal nesse campo da relação social. O ato obsceno é, em essência, um ato de comunicação. Por meio dele, transmite-se determinado conteúdo – a imagem da nudez humana – e esse conteúdo pode, certamente, ofender o sentimento médio de moralidade da comunidade, muito embora nem todos os membros dessa comunidade se ofendam diante das mesmas formas de nudez. A livre manifestação de uma idéia, opinião ou pensamento, no entanto, por mais ofensivo, inadequado, heterodoxo ou absurdo, é um direito irrecusável em uma sociedade organizada em Estado Democrático de Direito. A ofensa contida em um ato de comunicação, ainda que a forma (no caso, a imagem do corpo nu) utilizada para exprimi-la seja a da mais imediata representação, não pode ser objeto de censura por parte do Estado.

 

O fundamento “racional” para a incriminação do ato obsceno, em termos dogmáticos, estaria no sentimento de repugnância provocado pela obscenidade na consciência dos membros da comunidade destinatários daquele ato de comunicação. Ora, esse fundamento pode ser utilizado para justificar também “racionalmente” a proibição de manifestações de afeto homossexual em lugares públicos. Suas premissas – ambas, incorretas – são, em primeiro lugar, a atribuição ao direito penal de uma tarefa de conformação ético-social do cidadão; além disso, o tácito reconhecimento da legitimidade de uma censura estatal exercida sobre atos de comunicação de moralidade “duvidosa”.

 

Isso não significa que o direito não possa regular a manifestação do pensamento, nos casos em que o uso da liberdade de expressão resulta em ofensa ou lesão do interesse de terceiros: o emissor de uma opinião ou idéia pode responder civilmente pelos efeitos produzidos por seu comportamento. Em matéria penal, no entanto, a legitimidade da responsabilização do agente de uma determinada conduta está condicionada à verificação da lesividade da conduta para um bem de titularidade de terceiro(s), e mais: a ofensa penalmente relevante deve transcender aquele interesse individual, atingindo sensivelmente um metainteresse coletivo na preservação daquele bem individual. E o sentimento médio de moralidade de uma sociedade não se inscreve entre aqueles interesses cuja tutela interessa à ordem coletiva. Qualquer tentativa de se encontrar um denominador moral comum, se considerarmos a variedade de padrões morais existentes em uma coletividade de homens livres, resultaria inevitavelmente na adoção do parâmetro próprio de uma pequena fração dessa coletividade, com a consequente exclusão da expressiva parte constituída pelo sentimento de moralidade de todos os demais.

 

Além disso, especialmente no campo da regulação dos costumes, é preciso compreender que o direito penal não pode servir de instrumento para a tutela de valores ético-sociais internalizados pelo cidadão. O direito penal não atua como professor abstrato de educação moral e cívica (e, muito menos, de etiqueta). O Estado não pode, legitimamente, por meio da imposição de punições criminais, embutir valores assumidos como justos ou corretos (pela maioria) no sistema de crenças e opiniões do cidadão livre e pleno em direito. O que cabe ao Estado, com efeito, é garantir a proteção de certos bens jurídicos especialmente relevantes para a estabilidade da ordem social, nos termos da Constituição. Isso quer dizer que a escolha político-criminal de bens jurídicos a proteger por meio da norma penal deve se orientar por uma ordem complexa de valores recorrentemente oponíveis entre si, a partir dos quais se individualizam bens e interesses cuja proteção pode ser racionalmente justificada por sua necessidade para a estabilidade daquela própria ordem axiológica (constitucional). E não tenho dúvidas de que um suposto sentimento médio de moralidade da população não se inscreve entre os valores constitucionalmente reconhecidos como essenciais para a estabilidade da específica ordem de liberdade normativamente construída pela Constituição da República de 1988. Pelo contrário.

O Estado Democrático de Direito assegura a cada indivíduo, pleno em direito e autonomia, a liberdade de criar e estabelecer sua ordem pessoal de valores e um sentimento individual de moralidade baseado em sua experiência, em sua razão e em sua sensibilidade. É função de um tal modelo de Estado assegurar, precisamente, a liberdade de auto-conformação moral do indivíduo e, ainda mais: a liberdade de expressá-la diante da sociedade de que toma parte. Um Estado que proíbe a nudez pública do cidadão e a sanciona criminalmente é um Estado fundamentalmente autoritário e moralista. É um Estado que busca estabelecer pela força um padrão civilizatório, e que ignora a dimensão de uma verdadeira liberdade constitucional de manifestação do pensamento e, ainda mais, que se assume como um professor infalível de moral, definindo a nudez (quando não a classifica, segundo os parâmetros próprios de uma minoria, como artística) como forma de expressão necessariamente ofensiva. É, por isso mesmo, um Estado neurótico. Uma sociedade psiquicamente equilibrada não perverteria a nudez, criminalizando-a ao mesmo tempo em que tolera a sua comercialização sob a forma vulgar da pornografia ou de representações degradantes na TV aberta. Uma sociedade sã reconheceria a nudez como uma condição primária da natureza humana. Uma sociedade decente educaria para o sentido funcional do ato de se vestir, quebrando a associação milenar entre a nudez e inadequação, a nudez e o erro, a nudez e a vergonha. A nudez é a mais direta representação da verdade e não estaremos prontos para apreende-la se, diante dela, os nossos olhos se injetam (ou se abaixam). Seremos livres quando conhecermos a verdade, e para conhecê-la precisamos ir morar em um acampamento hippie, antes, reconhecer por que razões sociais temos necessidade de ocultamento do eu, em sua dimensão mais imediata: o corpo. E para isso, talvez um bom primeiro passo esteja no reconhecimento de que sem nudez não há verdade: há vergonha.

 

A vergonha da nudez foi o nosso primeiro erro.

 

fonte: http://pineapplelaws.wordpress.com/2012/09/20/sobre-o-direito-de-estar-nu-nudez-obscenidade-e-direito-penal/

 

setembro 20, 2012

 

(enviado por Peladistas Unidos em 2/01/13)


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