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Jornal Olho nu - edição N°144 - Novembro de 2012 - Ano XIII

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Extremamente insatisfeito com o preço abusivo da cerveja e descobre que seus amigos compartilham da mesma indignação? Proponha a eles ir todos protestar em frente ao supermercado, totalmente nus. Quanto maior o grupo, melhor. E pode dar certo. Mas, se ainda pensa que devemos o possível efeito positivo do ato, seja por uma causa nobre ou nem tanto, à sua origem histórica e por ele lembrar a todos de que é preciso proteger toda a sociedade contra atentados “ao pudor, à moral e aos bons costumes”, então é preciso reajustar esta crença por ela ter na verdade, como base, puras e nobres convicções idealistas e filosóficas e nada badernistas, de um lado, ou preconceituosas, do outro.

 

Atribui-se ao grupo Doukhobors serem eles os primeiros a criar, no início do século 20, o hábito, digamos hoje tradicional, de manifestantes contrários a uma resolução comercial, social, política ou judicial questionáveis protestar em público, de forma isolada ou com outros de igual pensamento, sem roupas. E se no ato apenas “as partes” estiverem devidamente cobertas, mesmo assim ele será em muitos países interpretado como uma exibição de nudez total.

 

E como essa vontade de assim manifestar surgiu? Para se entender que a evidência de o costume em se ficar nu em local onde a maioria não está nua realmente chama a atenção, um pouco de história é necessário – e acabamos entendendo que chamar atenção teve motivo singelo, ainda que dramático, entre esse povo pioneiro.

 

Os Doukhobors surgiram na Rússia (onde hoje se localiza a Ucrânia) no século 18 (alguns pesquisadores não descartam a possibilidade de que esse surgimento tenha realmente ocorrido no século anterior), em meio ao império russo, como um movimento sectário espiritual. E mesmo com o passar dos séculos, nunca conseguiram eles existir em número significativo, nem despertar interesse sobre seu passado ou conquistar novos adeptos com seus ensinamentos. Daí o quase total desconhecimento nos dias de hoje no resto do mundo a seu respeito.

 

O termo Doukhobors vem da palavra russa “dukhobortsy”, que literalmente significa “lutadores espirituais”, e o grupo só passou a assim se autodenominar, por questões políticas, no fim do século 18 – além de serem declaradamente contra religiões cujas rígidas doutrinas são estabelecidas pela mesma Bíblia que tanto respeitavam. Como sabemos, quando estes dois aspectos juntos se mostram antagônicos a uma nação inteira, política versus religião – e vice-versa, as chances de uma “grande explosão”, contra ambas as partes, são eminentes. E assim foi.

 

A real crença dos Doukhobors, povo que vivia de forma extremamente simples, em total comunhão de respeito e fraternidade, pregando entre si a igualdade, voltados para e obtendo da natureza toda a necessária subsistência, era a de que os homens deveriam se guiar pela razão e não pelo simbolismo, hermetismo, obscurantismo e alegoria dos milagres descritos na Bíblia. Esta era uma visão, portanto, totalmente contrária à da maioria absoluta da população russa, a qual de forma alguma ousaria sequer pensar em colocar tal assunto em dúvida ou em discussão, e cuja consciência os levou a ter que viver e a se organizar de forma segregada e secreta, longe e desconhecida dos olhos daqueles outros, para poderem sobreviver e manter sua liberdade, ainda que restrita, na linha de pensamento e a qual, logicamente, acreditavam e defendiam.

 

Ironicamente, se podemos considerar assim, os Doukhobors eram grandes admiradores de Jesus Cristo – mas a quem frequentemente eles fazem alusão como “um simples mortal de qualidades divinas na inteligência em seu mais alto grau”. E, por toda a simpatia a ele, foram equivocadamente também conhecidos entre o povo russo como criadores de uma nova religião, a da “Cristandade Espiritual”.

 

Não menos tementes a Deus (que em verdade para eles só podia ser encontrado na alma e na essência de cada um dos seres humanos, de cada ser vivo e matá-los seria o mesmo que matar o próprio Deus), sua maioria era formada por analfabetos e seus encontros para discutir o assunto, os quais não eram tidos entre eles como “manifestações religiosas”, porém como forma de obter e compartilhar ensinamentos, eram feitos ao redor de mesas, onde havia pão, sal e água, e tinham como tônica esta única crença. Trocavam ensinamentos contidos em salmos e provérbios extraídos do livro ao qual intitularam “O Livro da Vida”. O contraste entre a realidade da Rússia Czarista da época, de maioria pertencente à Igreja Ortodoxa Russa (ou Patriarcado de Moscou e que só se modernizou a partir de 1905 – início da queda da monarquia com o movimento socialista) como mandava o império russo, e o pequeno e tímido movimento espiritualista dos Doukhobors, herético, diferente e ousado demais comparado ao predominante “padrões de pensamento e conduta russos”, só podia mesmo levar a conflitos quando esses dois “povos”, tão opostos nas convicções, fossem “convidados” a se aceitar.

 

E o inevitável aconteceu. No fim do século 18, cidadãos e cidadãs russos que estiveram expostos aos ensinamentos dos Doukhobors, embora em pequeno número, tornaram-se fervorosos simpatizantes. Estando assim “misturados”, membros dos Doukhobors por sua vez se interessaram em conhecer melhor os ensinamentos contidos na religião ortodoxa russa. Atraídos também pelo estilo de vida da cidade grande, embora a mesma tivesse mais a pobreza que outra coisa melhor para oferecer, resolveram abandonar a comunidade. Estes, já convertidos, mas sem abandonar por completo o pensamento de origem, tornaram-se conhecidos como “os Cristos dos Doukhobors”. E assim, com eles integrados à sociedade, curvando-se à elite tradicional russa e divulgando os pensamentos provocativos de seu povo de origem, a perseguição aos puros e pacifistas Doukhobors passou de quase nada a se intensificar.

 

Pedro Verigin, líder na época dos Doukhobors, foi levado e interrogado pela polícia sobre suas convicções religiosas. Em resposta, declarou ele que Deus havia dado ao homem a liberdade de decidir seus próprios passos e que não haveria, assim, qualquer necessidade de este ser regido por qualquer outro homem que se julgasse superior a qualquer um deles, pois, como entendiam, todos os homens eram iguais perante Deus e só a Ele deviam obediência. A declaração foi entendida mais como uma provocação política contra o império russo do que uma mera e isolada crença religiosa e os dias de paz dos Doukhobors acabavam naquele instante de existir – em princípio com a prisão de Verigin. Afinal de contas, eles eram cidadãos russos e, como tais, deviam indiscutível obediência à monarquia.

 

Mesmo à distância, e acompanhando o que ocorria em sua comunidade, os ensinamentos de Verigin continuaram a chegar a ela através de cartas secretas para reforçar os ideais dos Doukhobors. Seguidos à risca, seus ensinamentos levou-os a adotar o que ele chamou de “O Grande Partido dos Doukhobors”. Instituiu ele o seguinte a seu povo: “Os Doukhobors são um povo eleito por Cristo, verdadeiramente Cristão e não se deve esperar deles trabalhar de forma física, mas de forma espiritual. Eles devem se desapegar de seus bens materiais perecíveis. orar de acordo com o Evangelho e os animais domésticos devem estar em liberdade, porque tudo o que está vivo deve ter liberdade. E o dinheiro que pertence a César deve retornar a César. Os homens estão pervertendo sua natureza, e seu corpo que é a síntese da perfeição, ao usar roupas e deveriam viver todos nus, como o primeiros humanos, Adão e Eva. E seu alimento deve ser apenas constituído de frutas, vegetais e água. Eu próprio, Verigin, tentei me alimentar de musgos apenas inspirado pelas renas e descobri seu bom sabor”.

 

Prosseguiu ele recomendando que todos os membros não passassem a fumar, nem beber vinho ou comer carne, porque o homem não devia privar qualquer coisa viva da vida. Além disso, recomendou também que deveriam manter a castidade, como forma de dar integridade à perfeição e que os solteiros não deviam se casar e que os já casados vivessem como irmãos e irmãs. Recomendava a seu povo, cujos membros casavam entre si, que deveriam manter-se puros e prontos para encontrarem-se com Cristo, como as Cinco Virgens da parábola do Evangelho de quem tanto ouviam falar. Finalmente, Verigin aconselhou todos os jovens de sua comunidade a renunciar ao serviço militar e a destruir toda e qualquer arma que pudessem já ou vir a possuir.

 

Estando preso por cinco anos e cuja pena acabava de ser estendida para mais cinco, Verigin sabia que em breve sua comunidade também seria obrigada a prestar obediência ao império e que a melhor estratégia para eles sobreviver seria a de não reagir com qualquer sinal de violência. E se sua comunidade viesse a ser aniquilada, estariam eles, com sua recomendação de manterem a castidade, em menor número de membros, e prontos a cumprir os desígnios de Deus para sua Perfeita Criação – o homem. Tais desígnios diziam que “Quando o homem deixa de confiar em sua própria consciência e em sua liberdade, nem mesmo seu Deus os poderá salvar”.

 

Pacifistas por tradição e convicção e lembrados a assim sempre agir por seu líder Pedro Verigin, em 1895 todos os saudáveis homens e mulheres Doukhobors foram convocados a ir servir nos campos militares do império e treinar para possíveis guerras. Porém, em conjunto, destruíram as armas assim que as receberam do governo russo e recusaram-se terminantemente a deixar a comunidade. A recomendação que veio antes, por carta secreta, de Verigin foi cumprida. E pelos desígnios do Czar, os jovens Doukhobors, homens e mulheres, foram facilmente capturados, não resistiram à prisão e foram condenados não à morte, mas à severas punições físicas, para servirem de exemplo a outros possíveis rebeldes da comunidade, em praça pública, por meio de 30 chibatadas aos homens e 40 chicotadas às mulheres, além de terem todos seus bens confiscados e vendidos e de então serem expulsos com suas famílias para a Sibéria. Sob a convincente ameaça de que todos seriam igualmente punidos por desobediência ao império, mas sem nenhuma reação de resistência, os demais membros da comunidade, velhos e crianças, foram poupados. Da forma como Verigin havia previsto e pôs em execução seus planos.

 

Mesmo assim, a forma secreta de existir e de viver dos pacíficos Doukhobors, com seu modo de pensar e agir considerados pelo governo czarista russo como altamente subversivo, não teve mais como ser mantida e sua comunidade não mais pôde viver em verdadeira paz. Temerosos de ataques em retaliação pelo governo e revoltosos contra a “absurda” recomendação de Verigin de manterem a castidade, a comunidade se dividiu em dois outros partidos: os “Myasniki” (“carnívoros” em russo, por eles também se recusarem a adotar a recomendação de não comer carne) e os “Postniki” (“jejunos”, que ficam em jejum, em russo e que continuaram a seguir todos os ensinamentos e as recomendações de Verigin). A decisão, logo se tornou ineficiente a este segundo grupo. Com a incidência entre os casados de casos de abortos, estes desistiram da divisão e passaram para o outro lado.

 

Os mais jovens, e em menor número (cerca de apenas 150), continuaram a manter a antiga ideologia, mas não se encontravam fortes, o suficiente, para enfrentar pacificamente a insistente perseguição da polícia russa. Cada vez mais fragilizados, com seu líder há tanto tempo exilado e sem o apoio do outro grupo que se mantinha agora simpático ao regime russo, deixaram-se condenar à deportação. Devido à Estrada de Ferro Transiberiana ainda estar em construção, levaram eles mais de um ano para chegar, de barco, montados em bois e principalmente a pé, na Sibéria, a qual na maior parte do ano se encontrava coberta por espessa camada de neve. Lá chegando, as rigorosas condições climáticas fizeram com que eles ficassem por pouco tempo vigiados por policiais e, então, abandonados à própria sorte.

 

Desoladas, com o anúncio da deportação de seus irmãos, muitas das mulheres casadas, do grupo que se debelou, pediram a seus maridos que as deixassem ir se juntar àquele outro grupo em sinal de solidariedade. A força da fraternidade entre os Douhobors dava sinais de ser restabelecida. Mas, não obtiveram permissão por ser totalmente desconhecido ao que elas estariam expostas na grande aventura e poderiam encontrar naquele lugar distante e tão adverso – se vivas chegassem.

 

Nem a paz de espírito, ao grupo “subversivo” e agora separado dos Doukhobors, tinha como ser reconquistada.

 

Pelo menos, até o equivocado e injusto conceito, de serem eles todos subversivos, começar a sensivelmente se dissipar. E somente a partir da segunda metade do século 20, graças principalmente à antes forçada imigração em massa de membros da outra parte da comunidade, os “Myasniki”, que se arrependeu da divisão pelo que, devido a ela, havia acontecido a seus outros irmãos, leais a Verigin e que se viam agora na obrigação de eles mesmos, a todo custo, restabelecer a paz em todos os sentidos a seu povo, como conheciam antes em suas raízes.

 

Confiantes de só assim ela conseguir, eles planejaram uma grande fuga em direção ao Canadá, país jovem e promissor no Novo Mundo, o que se deu em 1899. No ano anterior, a informação sobre essa decisão chegou aos Doukhobors na Sibéria, junto com a recomendação de Verigin de eles também fugir para aquele outro país. Nos anos de 1898 e 1899, mais de sete mil deles fugiram para o Canadá. A maioria, cerca de doze mil deles e que se tornaram leais ao governo com o apego de ficarem sob sua proteção, não delatou aquela parte de seu povo que partia, mas resolveram permanecer em solo russo. Em 1902, Verigin obteve por decreto o fim de seu exílio de 16 anos e, livre para ficar em solo russo com a outra parte, partiu também para se juntar aos fiéis irmãos que agora o esperavam na América.

 

E quanto ao protesto sem roupa dos Doukhobors? Para chegarmos a ele, tem início aqui, a narração sobre um marco em sua história e que se transformou num enorme e surpreendente paradoxo em relação aos convictos princípios pacifistas e espiritualistas que, em lugar neutro, longe de casa, não teve como deixar de surgir mesmo entre os mais tradicionais dos Doukhobors: já acostumados a este novo lar, parte desse grupo de imigrantes russos, tão avessos à política, se tornou materialista!

Não havia como esquecer as perseguições políticas, religiosas e sociais sob o comando do Czar Nicolas II, às quais ficaram constantemente expostos os Doukhobors, e que os levaram a também a perder grande parte de suas tranquilas terras naquela região russa para o governo. A fome e a morte foram inevitáveis decorrências. A esperança pelo restabelecimento e de poderem usufruir da paz em solo canadense, em época que a estrutura sócio-política do jovem país ainda se consolidava, animou o grupo para ele se mudar. O governo canadense, por sua vez, os recebeu de braços abertos e lhes ofereceu quatro grandes áreas de terras para que eles as explorassem e desenvolvessem com toda sua experiência na agricultura. O grande grupo de irmãos da comunidade, que chegou ao novo lar, com todos sempre juntos, viu-se pela primeira vez forçado a se separar, por ter sido compulsoriamente dividido pelo governo canadense em quatro grupos – mas nem todos se deram bem na divisão. Enquanto outros, muitíssimo!

 

Devido às imposições geográficas e climáticas, uns tiveram a sorte de ter maior produtividade no plantio de frutas, para o consumo próprio e para a venda, do que outros. A fartura nas colheitas levou-os à obtenção de grande renda também com a fabricação caseira de geleias e doces. Enquanto outros dos Doukhobors, levados a terras menos prósperas, quase nada produziam e continuavam a sofrer as mesmas agruras do país de origem. Irmãos antes humildes e agora cegos pela riqueza não se sensibilizavam com a má sorte dos irmãos ainda pobres, os quais também não obtiveram qualquer ajuda do governo canadense, que alegava já ter ajudado a todos da comunidade de igual forma, cedendo graciosamente a terra em que viviam.

 

Mais decepcionados do que revoltados com tamanha e surpreendente mostra de insensibilidade e ausência de solidariedade por parte de seus outros irmãos (além de muito famintos, doentes e confusos), o grupo resolveu se organizar e saíram juntos de suas terras, no que ficou conhecida como a “Marcha de Cristo”, em direção à de seus agora abastados irmãos. Com a aprovação de seu líder Verigin, foram todos nus para, em mais uma nova lição das inúmeras de seus tão tradicionais ensinamentos, mostrar e provar aos outros que, desprovidos de qualquer espécie de bem material, continuavam sendo, em essência, os mesmos Doukhobors de sempre e cujas convicções nos princípios humanitários, extremamente básicos, não haviam de maneira alguma os deixado se corromper. Aguardavam, assim, com aquele emblemático protesto pacífico, não apenas por um gesto de ajuda e de comiseração por parte de seus outros irmãos. O exemplo estava realmente na essência.

 

Desejavam em verdade que, mesmo separados, os Doukhobors não deixassem nunca de ser Doukhobors. A tentativa, para surpresa do pobre grupo, provocou o impasse com a questão de uma nova maneira de pensar que surgia e que por fatalidade não havia como rebater: a regra se manteria filosófica, ética e moralmente ideal, caso o destino da posse na divisão das terras daquele desafortunado grupo dos Doukhobors, que então protestava, tivesse, quando chegaram à América, sido trocado pelo destino do outro afortunado e agora abastado grupo? Difícil, desde longe no tempo, falar de forma realista sobre o que pode estimular e levar o ser humano à corrupção quando a humanidade alega que a lógica no pensamento e no raciocínio deve seguir o caminho da evolução... Essa antiga “lógica” viria agora a provocar também a mente dos Doukhobors espiritualistas.

 

Mesmo com o passar do tempo, isso pôde se ver que foi apenas em parte. Enquanto a prosperidade na América do Norte dos anos 1920 continuava a sorrir para o grupo separado dos Doukhobors, chamado de os “Edinolichniki” (ou “Independentes”), os princípios e valores morais tradicionais se mantinham imutáveis na outra parte entre os “Svobodniki” (ou “Filhos da Liberdade”). A ânsia por liberdade, e por nela se manter, cobrou deles um preço muito caro: declarando que não iriam se deixar subjugar e que não mais seriam obedientes ao regime do governo canadense teve como resultado um ataque à bomba ao trem em que se encontrava, em 1924, e que fez morrer um dos maiores e mais fiéis líderes (agora o último) dos Doukhobors, Pedro Verigin, aos 65 anos de idade.

 

Mais tarde, o destino cruel dos Doukhobors não poupou a outra parte, que se endividava com novos e constantes empréstimos bancários para poder manter e aumentar ainda mais sua produtividade. A famosa quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, trouxe a eles a inevitável perda de suas frutíferas terras para poderem honrar, de forma não voluntária, com a quitação dessas dívidas. Puderam permanecer na terra, mas em troca do aluguel pago pontualmente ao governo.

Começava a acabar, assim, não a saga, nem a lenda da Comunidade Cristã da Fraternidade Universal dos Doukhobors. E junto a suas incongruentes andanças pelo terreno dos interesses comerciais. Estavam acabando toda uma tradição ideológica. Com a modernização do sistema político-social russo a partir do fim dos anos 1980, muitos dos Doukhobors deixaram o Canadá no caminho de volta ao país de origem de seus ancestrais. Depois, com a maior tolerância em relação aos costumes entre nações que antes se contrastavam, a maioria dos Doukhobors pôde mais livremente casar-se com gente de outras etnias. E estima-se que apenas cerca de três mil e quinhentos Doukhobors, e que assim se identificam, existam atualmente em todo o mundo. Na Rússia, não mais do que o pequeno número de 50 deles é conhecido.

 

O “estranho” hábito de imitar os Doukhobors, em ficar nu em público (e que historicamente ocorreu apenas uma vez entre eles), geralmente também em grupo para chamar a atenção de autoridades, teve o lado idealista original perdido, mas o lado do protesto em si ficou mantido e só passou a acontecer em maior número, de forma mais reincidente e principalmente na Europa e nos Estados Unidos, a partir da década de 1960, quando protestos políticos por cidadãos de nações em processo de grandes mudanças politico-sócio-financeiras, ou em conflitos de guerra, embora sempre legalmente proibidos, causavam maior furor para esquentar a morna conquista da liberdade de expressão. Hoje, percebe-se que o pitoresco recurso não de forma contundente funcione. Mas não há dúvida que, de forma geral ele, nos dias atuais, ainda seja usado para pura e simplesmente chamar mesmo a atenção. Ou, em países mais desenvolvidos em sua forma de encarar valores morais que não são afetados ou mesmo ameaçados pela nudez, o ato não passe mesmo de apenas uma inconsequente diversão provocativa.

 

De qualquer forma e com o total desaparecimento dos Doukhobors batendo à porta, espera-se que os exemplos no pensamento ideológico desse povo, voltado a manter a integridade da natureza e do ser humano, a quem passe a ter conhecimento sobre sua triste e sofrida história, continuem sendo válidos e respeitados e que influam positivamente no progresso e desenvolvimento justo da complexa forma de pensar em relação aos hoje esquecidos, e nunca dispensáveis, reais valores morais desse mesmo ser humano, de seu corpo e de sua alma. É possível que muitos de nós nos espelhemos neles. Ou, preferivelmente, no que tem a ver com pelo menos um pouco da tradicional forma dos Doukhobors entender o sentido da vida. Quanto à natureza, sábia, esta sempre se virou sozinha.

 

Conflitos ideológicos à parte e de forma prática, esperemos também que, num futuro não muito distante, possamos numa roda de amigos simplesmente tomar outra daquela cerveja original que veio a provocar um sugestivo protesto. Mas, dessa vez, de forma muito pacífica e natural, verdadeiramente tranquilos e em real estado de confraternização, totalmente nus e a preço justo. Sem exageros no álcool, condição esta que vale também dizer, e com a total e real aceitação da simplicidade e da naturalidade da nudez por parte de todos os outros não naturistas que, juntos uns aos outros, compõem uma não apenas tolerante sociedade. Os Doukhobors tradicionais, admiráveis guerreiros espirituais, aprovariam.

 

Fontes:

“Spiritual Origins and the Beginning of Doukhobor History”

(Origens Espirituais e o Princípio da História dos Doukhobors),

de Svetlana A. Inikova, 1999

“Several Characteristics of Doukhobor Society”

(As Diversas Características da Sociedade dos Doukhobors)

– texto de autor desconhecido

escrito em 1805 em São Petersburgo, Rússia

“Story of a Spiritual Upheaval”

(História de Uma Reviravolta Espiritual),

de Vasily Nikolayevich Pozdnyakov, 1908

 

outubro de 2012

*Doni Sacramento, colaborador do jornal OLHO NU,

 é publicitário, ator e professor de inglês.

É criador e mantenedor (há 10 anos) de site inteiramente dedicado

à cantora e atriz luso-brasileira Carmen Miranda

(www.carmen.miranda.nom.br).

donisacramento@hotmail.com 


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