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Jornal Olho nu - edição N°128 - julho de 2011 - Ano XI |
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SOBRE A NUDEZ SOCIAL Por Viegas Fernandes da Costa* Imagens meramente ilustrativas
Ao iniciar estas breves reflexões a respeito da minha experiência com a nudez social, ocorre-me à lembrança uma matéria da revista Veja do final da década de 1990, que tratava da guerra civil na Libéria. Chamou-me especial atenção uma fotografia que exibia o cadáver de um homem nu que havia sido linchado pelos guerrilheiros e abandonado à rua. Podia-se ver todo corpo, suas feridas, a expressão de dor na face inerte e as lanhuras nos braços e pernas. Sobre o pênis, entretanto, uma espécie de tarja. Fiquei me perguntando o que seria mais obsceno: se a guerra civil e toda sorte de dor e destruição que esta provoca, onde cadáveres humanos são abandonados insepultos em meio à população que desesperadamente tenta sobreviver; ou se a exposição de um pênis aos olhos de leitores pudicos que poderiam se escandalizar, dando uma conotação sexual doentia a uma parte de um corpo humano barbaramente torturado e morto. Encaramos com naturalidade a guerra, o genocídio, a desestruturação social e a tortura, mas a nudez que nos cobre desde nosso nascimento é desnaturalizada ao ponto de um pênis supostamente chocar mais que a própria barbárie da guerra. Há, aqui, certamente, uma inversão de valores sobre a qual devemos nos questionar e incomodar.
Em ensaio intitulado “O casaco de Marx”, Peter Stallybrass escreve que, em uma sociedade capitalista, a mercadoria “torna-se uma mercadoria não como uma coisa, mas como um valor de troca. Ela atinge a sua mais pura forma, na verdade, quando ela é mais esvaziada de particularidades e de seu caráter de coisa”. Para exemplificar sua afirmação, Stalybrass se utiliza dos usos que Karl Marx fazia do seu casaco; aqui, entretanto, quero me valer do tapa-sexo de três centímetros “vestido” por Viviane Castro. Afinal, qual a função representada pelo tapa-sexo em questão? Vestir? Cobrir uma nudez? Acaso o corpo de uma mulher restringe-se somente à vagina? À que ordem ou economia pertence a obrigatoriedade do encobrimento da genitália, ainda que ínfimo, nos regulamentos do carnaval carioca, uma festa popular que explora a sexualidade de forma tão explícita? Da mesma forma nos questionamos a respeito da moda que propõe transparências, principalmente no vestuário feminino, permitindo o vislumbrar dos seios e outras partes do corpo até então escondidas por tecidos opacos, sem entretanto fazer com que julguemos nua quem as veste. Está vestida de transparências, mas está vestida.
Certa vez ouvi um historiador da indumentária dizer que a moda ainda cometerá muitas ousadias, entretanto, jamais a de propor, seriamente, a nudez total para o ser humano, sob o risco de destruir a si e à indústria que alimenta. Tinha razão.
Todos sabemos o quanto uma roupa pode fetichizar nosso corpo, e é este poder de fetichização que muitas vezes buscamos quando nos postamos diante do espelho de um provador. Assim, ao escondermos, mostramos, e na maioria das vezes mostramos algo que não existe senão no desejo, seja no de exibir, seja no de ver. Não quero aqui, porém, incorrer no mesmo equívoco que critico. A fetichização estimulada pela indumentária não é, em si mesma, algo errado, desde que compreendida em sua dimensão cultural. Se a roupa me serve como instrumento de representação social, devo reconhecer tal fato, e não naturalizá-lo sob um discurso hipócrita que imputa aos genitais sujeira e vergonha. “Vergonhas” era como Pero Vaz de Caminha se referia às vaginas das nativas em sua carta de “achamento” ao rei de Portugal: “ali andavam entre eles três ou quatro moças, muito novas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos, caídos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha”. Vejamos, Caminha está impregnado do discurso do seu tempo, ainda assim conclui dizendo que não tinham eles, europeus cristãos, vergonha alguma em contemplar a nudez dos nativos. Compreendeu Caminha que um corpo socialmente nu, que assume assim sua condição integral de corpo ante os olhos do outro, deixa de ser apenas uma vagina, um pênis ou um par de seios? O poder econômico reprimiu nossa nudez e agora pode vendê-la; o poder simbólico da ética judaico-cristã, moldada no elogio da dor e da carência, reprimiu nossa nudez, desejos e prazeres para assim melhor nos disciplinar. Disciplina que nos move para a guerra e para a fábrica; economia que nos fragmenta, fetichiza e transforma em mercadoria. Ao fim restamos como aquele cadáver fotografado, abandonado nas ruas da Libéria, a genitália encoberta pela hipocrisia. II – Despindo espartilhos. Quando me propus escrever um depoimento a respeito da minha experiência com a nudez social e comunidades naturistas, não pretendia tanta tergiversação sobre a nudez e a sociedade têxtil. Entretanto, faz-se necessário compreender que despir-se das vestes no seio de uma coletividade implica não apenas assumir e respeitar seu próprio corpo, bem como afrontar toda uma ordem discursiva que entende existir no corpo o contrário daquilo que defendia Dora Vivacqua, ou seja, que portamos partes pudendas, vergonhosas, sujas e incontroláveis, e que por isso mesmo devem permanecer resguardadas para a intimidade. Ordem discursiva inerente aos interesses materiais e simbólicos do nosso tempo e sociedade.. Tenho consciência da falta de ineditismo das reflexões que trago aqui, afinal, a discussão sobre a nudez social é antiga nas sociedades ocidentais (e há sociedades onde esta discussão sequer se faz necessária, pois jamais alijado o corpo do direito à nudez), tendo os movimentos de nudismo se organizado, na Europa por exemplo, desde o início do século XX. Ainda assim, no Brasil, a nudez social é mal compreendida e resiste muito preconceito em relação ao tema e seus adeptos. Após o assassinato de Luz del Fuego, em 1967, o então chamado movimento naturalista começou a se dispersar, e sobraram alguns poucos adeptos do nudismo, que enfrentavam a marginalização e se entregavam à prática em praias de difícil acesso, estado agravado pela ditadura militar brasileira. Segundo narra Celso Rossi, em seu livro “Naturismo: a redescoberta do homem”, foi apenas a partir da segunda metade da década de 1980 que um movimento organizado, autointitulado naturista, começou a se desenvolver a partir da Praia do Pinho, no litoral catarinense. À época a Praia do Pinho, localizada no município de Balneário Camboriú, era acessada por uma estrada de terra bastante íngreme e em péssimo estado de conservação, o que atraía os praticantes da nudez social para aquele local, já que tornava-o pouquíssimo frequentado. Após uma reportagem sensacionalista da revista Manchete, em 1984, a Praia do Pinho foi apresentada ao país como um local onde pessoas nuas tomavam banho de sol e mar, atraindo para lá toda sorte de curiosos e a atenção das autoridades públicas e das forças de repressão. Como resposta à invasão de curiosos e à repressão aos naturistas frequentadores do Pinho, alguns destes começaram a organizar um movimento que, em 1986, resultou na Associação Amigos da Praia do Pinho e na redação de um Código de Ética Naturista. Dois anos depois, em 1988, ainda a partir do Pinho, foi fundada a Federação Brasileira de Naturismo (FBrN). Como se vê, uma história bastante recente. Segundo o “Guia brasileiro de naturismo”, publicado na edição de número 10 da revista “Brasil Naturista” (dezembro/2010), são pouco mais de vinte as áreas onde a nudez social é legalmente institucionalizada e praticada em todo território nacional, e estima-se em aproximadamente 300 mil o número de naturistas brasileiros declarados. Foi justamente na Praia do Pinho, há poucos anos, que, acompanhado de minha esposa, passei a experienciar a nudez social. Experiência e vivência que pretendo brevemente discutir agora. Considerando o fato de vivermos inseridos em uma sociedade profundamente hedonista, onde o culto a um corpo “perfeito”, padronizado nos discursos da moda, da mídia e da medicina estética, leva uma imensa quantidade de pessoas às academias de ginástica, mesas de cirurgia e aos balcões das lojas de sumprimentos alimentares e inibidores de apetite, o imaginário a respeito da geografização do nosso corpo muitas vezes potencializa nossas neuroses e nosso medo da nudez. Ou seja, além de toda a ordem discursiva que procura cercear nosso direito à nudez, tememos também nos despir por nos acharmos feios e disformes. Que nossa nudez agredirá o olhar do outro não apenas pela nudez em si mesma, mas porque nosso corpo nú, em particular, não condiz com uma norma estética, arbitrariamente idealizada, mas que muitas vezes reconhecemos como socialmente legítima. Internalizamos a crença de que estar fora desta idealização agride não apenas ao olhar que busca o “belo” em meu corpo, mas que permite ao outro me julgar não apenas como feio, mas também como um desleixado, por ter permitido que a indisciplina moldasse minhas carnes, ou, e ainda pior, como um fracassado, já que não perseverei no “cuidado de mim”. Assim, despir-se das vestes em público significa ato não apenas de ruptura com uma moral que encontra em nossos corpos partes pudendas, naturalmente obscenas, e por isso necessárias de serem encobertas, como já discutimos, mas também ato de assunção do próprio corpo enquanto estrutura integral e natural, apesar de todas as interferências culturais que sobre si recaem. Conviver socialmente com o corpo completamente descoberto significa, também, compreender uma mudaça de valoração social. Enquanto sujeitos múltiplos, continuaremos representando papeis, ainda que nús; porém, o fetiche que a sociedade têxtil imprime sobre nossos corpos através da indumentária e do jogo de esconder e revelar que esta estimula, na prática da nudez social dá lugar a outro nível de valoração, que considera o sujeito naquilo que este diz e na maneira como age no interior do grupo. Persistem com a prática da nudez social – não sejamos românticos – camadas de preconceito para consigo e para com o outro; entretanto, a primeira camada de julgamento social que tecemos quando avistamos alguém trajado com sua fantasia no seio de uma sociedade têxtil, desaparece. Serei julgado quando me fizer conhecer, e não apenas pelas etiquetas que exibo afixadas nos panos que me cobrem. E o que parece um gesto breve, de pouca importância, resulta em um processo de novos despires onde pré-conceitos podem dar lugar a relações pautadas por conceitos, construídos a partir do conhecimento, do diálogo e da interação. Conceito que construímos não apenas a respeito do outro, bem como a respeito de nós mesmos; ou seja, a nudez social estimula a alteridade. Sabemos, portanto, do quão transgressor pode se caracterizar o gesto de tirar a roupa e conviver socialmente sem esta. Insisto lembrar que o caráter transgressor da nudez está relacionado com o contexto social em que se insere, em nosso caso, a sociedade têxtil. A transgressão e ousadia do ato parece ainda maior quando se trata de corpos que a sociedade classificou como “defeituosos ou deficientes”. Ou seja, que por alguma característica que manifesta, afasta-se da imagem que temos de um corpo normal, construída em nosso imaginário. Digo isso de experiência própria, já que carrego em meu corpo as marcas de uma doença neuromuscular que me atrofiou os membros inferiores e superiores, e provocou “deformidades” em minha coluna e tórax. Então, além da necessidade de se descontruir todo discurso moralista, higiênico e jurídico que recai sobre a nudez social, a pessoa, cujo corpo se apresenta marcado por “deformidades”, necessita desconstruir o estigma que internalizou a partir de uma série de discursos limitadores e deformadores do portador de direitos especiais. Ao dizer isto, ocorre-me o caso de Emma Müller, filha do naturalista alemão Fritz Müller (1822-1897), radicado no Vale do Itajaí a partir de 1852. Emma possuía uma doença que lhe afetou o desenvolvimento físico e mental, e era, por este motivo, afastada do convívio social. Este caso chama ainda mais atenção quando sabemos que Fritz Müller, renomado cientista, foi um dos principais defensores da teoria evolucionista desenvolvida por Darwin. Temos consciência que situações de afastamento social, como no caso de Emma, não eram excessões, mas regra, no século XIX; e que apesar de todos os avanços jurídicos e de todas as mudanças culturais que presenciamos em nosso país naquilo que se refere aos direitos e às condições das pessoas portadoras de direitos especiais, ainda agora, em pleno século XXI, aquele que carrega no corpo os estigmas de uma doença ou trauma físico precisa lutar não apenas contra o preconceito social, mas principalmente contra os estigmas que internalizou e assumiu como reais. Se Malcom X ensinou às mulheres negras estadunidenses a se olharem no espelho e se reconhecerem enquanto belas, da mesma forma, cada sujeito, independente de suas “marcas pessoais”, deve aprender o mesmo.
Assim, ao despir-me, na Praia do Pinho, reconheci a “graça” em mim, o “cuidado de si” não para atender às necessidades estéticas do outro, mas para a minha conciliação comigo mesmo, em um processo de reconhecimento da minha integralidade. Da mesma forma como o corpo de Viviane Castro não se resume à vagina, o meu não se resume ao pênis ou aos pés atrofiados, por exemplo, que até então escondia dos olhos que não fossem meus. Daí este sentido libertador que a nudez social significou para mim, e que se aprofundou depois que passei a frequentar a comunidade naturista Colina do Sol, no município gaúcho de Taquara. Em vida comunitária, a nudez social estabelece outros tipos de relações, ainda mais honestas, e as possibilidades da assunção integral de si são maiores e mais intensas.
*Viegas Fernandes da Costa é escritor e historiador. Autor dos livros “Pequeno álbum”, “De espantalhos e pedras também se faz um poema” e “Sob a luz do farol”. A publicação deste texto está permitida desde que mantido na íntegra e citado o autor. via Blog do JC de João Carlos de Souza em 24/03/11 (enviado em 24/03/11) |
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