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Jornal Olho nu - edição N°127 - junho de 2011 - Ano XI

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Naturismo em Portugal - reportagem

Só entra quem está nu

"TIRAMOS as roupas e dormimos num parque de campismo onde coelhos e pássaros convivem alegremente com pessoas nuas. Ao acordar, pela mão de um ex-militar belga, naturista veterano, descobrimos as mais secretas praias do Algarve"

Por Ricardo Dias Felner (Revista Sábado)

Obs: Imagens meramente ilustrativas

"Quando ultrapasso o sinal que delimita a zona nudista do Parque de Campismo da Quinta dos Carriços, surge um homem grande, todo nu, 1,90 de altura, bem mais de 100 quilos. À passagem do carro interrompe a preparação do jantar, em frente à tenda, e aproxima-se do pequeno caminho que galga a colina, fazendo-me um ligeiro aceno com a cabeça. A sua mulher, uniformemente bronzeada, pára também de pôr a mesa, o mesmo olhar inquisidor. Retribuo respeitosamente e sigo a baixa velocidade, procurando um sítio que obedeça a dois critérios: seja suficientemente longe dos outros campistas para que não se sintam vigiados; seja suficientemente perto dos outros campistas para que eu experimente o ambiente naturista.

A escolha é difícil. Dou outra volta à colina e passo novamente junto ao homem grande. Está agora em cima da estrada, como se aguardasse a minha passagem. “Bonsoir”, atira, a voz grossa. “Bonsoir”, respondo sem abrandar. Decido-me, finalmente, pelo outro extremo do monte, estacionando numa pequena encosta, polvilhada de figueiras e oliveiras. O poiso permite-me uma perspectiva de coruja. Lá em baixo, a maioria dos campistas janta, tranquilamente, sem qualquer roupa, aproveitando o anoitecer ameno do Algarve. Mas no exato instante em que desligo o carro os seus movimentos congelam-se.

Toda a gente – uma dúzia de casais estrangeiros – parece suspensa pelo meu próximo gesto. A pressão é terrível. Adivinho os comentários (“É um campista enganado”. “É um oportunista em busca do melhor terreno do parque”. “É um solteirão à procura de sexo grupal”). Tenho rapidamente de enviar um sinal de confiança. Respiro fundo e dirijo-me, então, para a bagageira. Antes mesmo de desensacar a tenda, desensaco-me a mim. Só depois me dedico à construção do lar. Posicionado de cócoras, o corpo nu balançando ao ritmo das marteladas nas espias, ouço o tilintar dos talheres nos pratos. A normalidade havia sido restabelecida. Superara a prova da tenda, já era um deles. Ou assim julgava.

O homem grande trataria de me mostrar que estava enganado.

De início, o objetivo era apenas escrever uma reportagem sobre nudismo na praia. A ideia de incluir o campismo surgiria já depois de um nu integral na praia da Bela Vista, na Costa da Caparica, e de outro na Ilha de Tavira. Essas etapas haviam sido ultrapassadas sem danos psicológicos graves, mas no final continuava-me a escapar a vivência, a filosofia naturista. Sentia que precisava de algo mais profundo, mais libertador. Muito do que vira até aí tinha mais que ver com sexo do que com uma busca pela comunhão com a natureza, no seu estado original.

Na altura, contudo, não reconheci devidamente as diferenças entre as duas experiências. Na praia, permanecera deitado ao sol, sempre deitado ao sol, sem me mexer. No campismo, por seu lado, teria de deambular nu, comer nu, lavar a louça nu, montar a tenda nu. Mesmo reconhecendo ser as praias a sul da Bela Vista as mais agitadas e promíscuas de Portugal - tendo assistido ao corrupio de engates, entre homossexuais, nas dunas da Costa da Caparica - não há comparação. O campismo naturista, ainda que saudável, seria uma experiência mais extravagante.

No dia seguinte, ainda umas sete da manhã, acordo com o som de uma passada rápida intrometendo-se no canto das rolas. Abro o fecho da tenda e espreito cá para fora. Um homem de barbas farfalhudas, o cabelo desgrenhado, de um louro quase branco, faz o seu jogging matinal. Equipamento: meias e sapatilhas. Os meus vizinhos mais próximos, um casal sexagenário francês, também já acordaram, mas desprezam o atleta madrugador: ele permanece imperturbável de livro no colo, esparramado numa espreguiçadeira, de frente para o sol, junto à caravana; ela nas lides domésticas, estendendo roupa (Para quê?, pergunto-me).

Saio da tenda. Antes de ir ao balneário, o primeiro instinto é vestir uns calções e uma t-shirt. Chego a enfiar uma das pernas na roupa, só me apercebendo depois que não é suposto fazê-lo. A única coisa necessária é um par de chinelos (aliás, se acrescentarmos protetor solar, uma toalha e uma bolsa de produtos de higiene, temos um kit completo para a estadia no parque da Quinta dos Carriços – em Salema, entre Lagos e Sagres, um dos três campings naturistas existentes em Portugal). Dito isto, qualquer iniciado vê neste despojamento vários constrangimentos. Os 50 metros entre a tenda e a casa de banho, que calcorreio apressadamente, parecem-me um calvário interminável. O quadro é ridículo: um homem despido, pochette debaixo do braço, cumprimentando à sua passagem outras pessoas despidas. Até os coelhos, paralisados no meio da estrada, parecem assustados, enfiando-se no arvoredo.

Já no balneário, um campista checo pincela a cara com espuma para a barba; dois lavatórios ao lado, de frente para o espelho, a mulher do homem grande espalha creme hidratante pelo corpo - por todo o corpo. Procuro ser o mais discreto possível, soltando um “good morning” tímido e dirigindo-me logo para o chuveiro. Também nesta área o acesso é misto. No compartimento ao lado, um casal espanhol partilha o banho. Depois, há-de chegar um casal e os seus dois filhos adolescentes. O acesso simultâneo permite poupar fichas de água quente e é um momento de convívio familiar.

À saída, pergunto por praias nudistas na região a um turista espanhol. Ele abre muito os olhos, surpreendido, como se a resposta fosse evidente: “Na zona, nenhuma praia é naturista e todas o são. Compreendes?”

Decido-me, todavia, pela praia das Adegas, em Odeceixe. Não é a mais próxima: uns 40 quilômetros de caminho, subindo por Aljezur, junto à costa oeste. Mas é uma praia naturista licenciada, uma das cinco reconhecidas pelo Estado.

À chegada, espreito pelo miradouro e vejo um rabo. Não há que enganar. Desço a longa escadaria (há quase sempre uma longa escadaria até uma praia nudista) e escolho um cantinho. A primeira surpresa é o nadador-salvador: bem no meio do areal, uma meia-lua bordejada por rochas altas, um rapaz está de calções em t-shirt, olhando os banhistas, uma trintena deles.

A segunda surpresa ocorre quando, numa atitude inédita, arrisco levantar-me e caminhar até ao mar. Estou disposto a sair do armário, a dar o meu grito do Ipiranga. É um percurso difícil, quase espiritual, absolutamente decisivo na carreira de um naturista. Ultrapassada a areia seca, tudo parece correr bem. Não ouço vaias, nem sinto fruta podre embatendo nas minhas nádegas brancas. O pulso também está controlado e a respiração normal. O que mais receio, agora, são mesmo as ondas gélidas da costa oeste trepando -assustadoramente- pelas pernas. Ui. Ponho-me em bicos de pés, adio aquele momento. Sou a única pessoa no mar, o anfiteatro todo concentrado em mim. Procuro alhear-me disso. Não consigo: olho fugazmente a audiência. Pânico. A escassos 20 metros, passa o pesadelo do nudista: o colega de profissão. De trás de um rochedo, de rompante, aí está o António como nunca o vira. Pior: aí está o António com a sua namorada como nunca os vira. Procuro esconder a cara, não fazer gestos bruscos e limitando-me a um desvio estratégico. Julgo que eles fazem o mesmo, julgo mal: quando volto a espreitá-los vejo sorrisos trocistas. Não quero acreditar. Pode ter sido só insegurança minha, uma alucinação persecutória. Somos adultos, somos naturistas; não somos crianças no recreio gozando com as partes de cada um. O meu colega não ousaria comparações infantis ou comentários sobre a falha reveladora no meu bronze.

Só que volto a espreitar. E volto a vê-los com a mesma disposição divertida, os mesmos sorrisos.

De regresso ao acampamento, decido abordar o homem grande. Ao segundo dia, já estava capaz de lavar os dentes nu, já conseguia passear nu pelo parque – muito bonito e tranquilo e bem mantido, por sinal. Mas continuava a falhar-me a linguagem das árvores e dos passarinhos, sendo o nudismo uma obrigação e não uma fruição descontraída. Precisava de ajuda e, aparentemente, ninguém melhor do que o homem grande – o mais frontal dos campistas - para me ajudar.

O momento que escolhi para o encontro não foi inocente. Era já noite e soprava um vento frio de Sagres. Os campistas estavam todos tapados. Quando me aproximei, o casal bebia Monsaraz sentado na mesa em frente à tenda. Só uma luz amarelada, proveniente de um pequeno candelabro, iluminava as suas caras. O homem grande levantou-se na minha direção. Expliquei-lhe o que pretendia - e foi como se ele o soubesse desde o início, como se tivesse escrito “jornalista” na testa.

Ofereceram-me do seu vinho, muito simpáticos – quase aliviados –e apresentaram-se: Marc e Ann, belgas, casados, duas filhas. Ela com 55 anos, preferiu não revelar a profissão; “ele um pouco mais velho”, assumiu-se como um ex-militar. Há oito anos que fazem férias naquele sítio, precisamente naqueles cinco metros quadrados logo no início da zona naturista do camping. “Sou uma espécie de segurança. Sei sempre quem entra aqui”, diz Marc.

Ao terceiro copo, pergunto-lhes que perfil traçaram de mim, na primeira vez que me viram. Se se aperceberam que era um novato. Respondem os dois ao mesmo tempo: “Claro”. Como? Ann, que conhecera na casa de banho, adianta-se, rindo: “Os naturistas olham-se nos olhos”. Marc percebe a delicadeza do assunto. Intromete-se. “É uma coisa que não se explica. Nós sentimos quando alguém não é naturista. Foi por isso que quando parou o carro, eu fui aqui por trás, subi aquele monte, e fiquei a vigiá-lo. Como se despiu logo e estava a tratar da tenda, vim-me embora. Fiquei tranquilo.”

Já no plano conceptual, a primeira coisa que Marc procura esclarecer é a diferença entre nudismo e naturismo. “Nudismo tem mais que ver com exibicionismo. Nós não iríamos à praia da Costa da Caparica a que você foi, por exemplo. Nem a Cap D’Agne, em França, onde as pessoas e os casais procuram experiências sexuais. Eu nunca tive uma ereção na praia. O que nos interessa é sentirmo-nos unificados com a natureza.”

Seguiram-se outras razões, cultas e sofisticadas. Marc chegou a citar Virgilius, um poeta da Roma antiga. E ambos sublinharam o espírito de solidariedade – “ajudamo-nos uns aos outros” –, as preocupações ecologistas – “somos quem mais limpa as praias -, bem como uma espécie de regresso à pureza da humanidade e a um estado onde “a marca dos calções de banho não distingue as pessoas”. No final, no entanto, tudo se simplificou. “Ser naturista é andar dois quilômetros a pé para encontrar uma praia paradisíaca, selvagem, onde não faz sentido estar vestido”, sintetizaria Marc, naquele que me pareceu o argumento mais convincente da noite.

Na manhã seguinte, fui ter com o atleta madrugador. Queria ouvir outra opinião. E não podia deixar de falar com alguém que me parecia estar num estádio mais elevado do seu processo naturista. Só hesitei na minha apresentação. Se fosse vestido estaria a quebrar o protocolo naturista; se fosse despido estaria a inaugurar uma forma – excêntrica - de entrevista jornalística. Por fim, decidi-me pela segunda opção. Agarrei num bloco e numa caneta, calcei os chinelos, e desci a pé até à sua tenda. O campista acabara de correr e descansava agora ao sol, o corpo branco ainda suado. Friedrich, 55 anos, professor de alemão na Alemanha, não tinha nada de lunático. Nem estava na primeira divisão do nudismo. “Apenas gosto de sentir o sol e o vento na pele”, disse-me, recusando teorias fundamentalistas sobre o assunto. “Quando posso, deixo que todo o corpo tenha esse prazer”.

Antes de me lançar à estrada, ainda falei com o casal belga. Marc prontificou-se a revelar-me o paraíso. Sacou de um mapa militar e perguntou-me com a sua voz de comandante – “Sabe ler um mapa militar, não sabe?”. Depois, esboçou os trajetos até três das mais belas e secretas praias do Algarve, entre Lagos e Vila do Bispo. “Oficialmente não são naturistas, mas é como se fossem. De uma forma geral, nós deslocamo-nos para o lado direito do areal”, aconselhou-me.

Segui as indicações e já com um pé numa praia perto de Figueira, quase me converti. Depois de meia dúzia de quilômetros por atalhos e estradas de terra, surgiu-me o areal magnífico, intocável, da praia das Furnas, só uma dúzia de pessoas educadamente encostadas às rochas douradas, protegendo-se do sol dentro de grutas. Havia naturistas e pessoas de fato de banho, crianças e velhos, num convívio tranquilo.

O mar era um espelho plano, transparente.

Quem não se despe por isto?

Fonte: http://contemplandojazz.blogspot.com

Publicado originalmente em 2/08/09

(enviado em 25/05/11 por Luiz Afonso de Assumpção) 


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