') popwin.document.close() }

Jornal Olho nu - edição N°126 - maio de 2011 - Ano XI

Anuncie aqui

A NUDEZ NA HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA

por Henrique Ferraz* e Nadime L'Apiccirella**

O artigo que aqui apresentamos é um estudo da obra "A História da Vida Privada", em 5 volumes, dos historiadores Paul Veyne (volume 1), Georges Duby (volumes 2 e 4), Philippe Ariès (volumes 3 e 4), Roger Charier (volume3), Gerard Vincent (volume 5) e Antoine Prost (volume 5). Cada livro refere-se a vários aspectos de uma época específica. Concentramo-nos acerca do debate sobre a nudez, em seus aspectos de privacidade, intimidade e sociabilidade. Durante a história houve distintas maneiras de tratar essa questão. Tentamos, assim, fundir a argumentação sob este motivo de maneira simples e didática.

Do Império Romano ao ano 1000 d.c

Na vida pública, durante a Antiguidade Clássica, houve uma longa sobrevivência da indiferença em relação à nudez. A nudez do atleta, por exemplo, ainda hoje continua sendo um indício de posição, como símbolo de saúde. O papel essencial dos banhos públicos como ponto de reunião da vida cívica clássica fazia da nudez, entre os pares e diante dos inferiores, uma experiência cotidiana inevitável.

A postura de um homem (nu ou vestido) é a verdadeira marca de sua condição, uma marca tanto mais convincente quanto minimizada. Para as mulheres, a vergonha social que havia em exibir, de modo inconveniente, constituía uma preocupação, não pelo simples fato de se mostrar nua, pois a nudez diante dos escravos é moralmente tão insignificante quanto a nudez diante dos animais, e a exibição física das mulheres das classes inferiores constitui outro sinal de sua desregrada inferioridade em relação aos poderosos.

A sociedade do Oriente mediterrâneo se organizava de modo ainda mais conservador acerca da generalização da vergonha sexual. Em Antióquia (Síria), João Crióstomo ousa atacar os banhos públicos, ponto de reunião social, por excelência da elite. Critica o hábito das mulheres da aristocracia de exibirem a uma multidão de servos suas intimidades, cobertas apenas de jóias, que constituíam a marca de sua elevada posição. Na Alexandria (Egito), os farrapos dos pobres deviam provocar no crente visões perturbadoras, medo inconcebível, nos séculos anteriores em que essa nudez parcial era tida como indigna, mas dificilmente como fonte de inelutável perigo moral.

A nudez cristã tinha um significado muito diferente, homens e mulheres eram batizados nus na piscina octogonal, adjacente a toda catedral, nas noites de sábado santo. Nus, como Adão e Eva da criação, saíam da água, mortos para o pecado e ressuscitados para a vida eterna. A nudez constituía, então, uma afirmação de sua condição de boa criatura, dependente de Deus (antes do pecado ou sem este).

O desaparecimento do batismo por imersão na época carolíngea (séculos VIII e IX) suscitou a retomada, podemos dizer, ao simbolismo pagão e deu à nudez um significado sexual e genital que ela não tinha. Mais adiante, desapareceram os crucifixos em que Cristo se apresenta nu, como todos os escravos condenados ao mesmo suplício. Um padre de Narbonne teve uma visão desse Cristo, que lhe pediu para vesti-lo. De fato, era a época em que em Bizâncio (antiga Constantinopla) se difundia o Crucificado vestido numa longa túnica - o colobium. Obviamente, a sensibilidade da época começava a recusar esse espetáculo, que parecia indecente e até perigoso, pois Cristo corria o risco de ser adorado pelas mulheres como um Deus da fertilidade, à maneira de Príapo (deus romano do amor) ou de Freyr (deus viking da paz, prosperidade e patrono da fertilidade), cujas representações nuas não deixaram dúvidas sobre sua função.

Assim, o corpo vestido, banhado, penteado e enfeitado acabava sendo adorado e, para que não se tornasse idolatrado por outros motivos, era preciso vesti-lo. São Bento tanto compreendera isso, que em sua regra recomendou aos monges que dormissem vestidos, "Cada qual terá um leito para dormir" e "se possível for, todos dormirão num mesmo local", "para que [...], ao soar o sinal, se levantem sem demora e se apresentem para consagrar à obra de Deus". As noites, para os monges, também deviam ser consagradas, nesse caso, ao amor de Deus, pela oração.

Da Europa Feudal à Renascença

As narrativas feudais debatem amplamente sobre a exposição do corpo nu, ao olhar de si, de sua captura pelo olhar do outro, da função ambígua do vestuário (como proteção, pudor ou adorno), da percepção e do uso da nudez nas práticas sociais das comunidades fictícias literárias. O recurso ao traje aparece nas narrativas feudais como revelador de desejos exibicionistas e de um sentimento contraditório de vergonha. Através dessa obsessão, "estar nu ou mal vestido", a literatura põe em cena o sentimento de incômodo experimentado pelo sujeito posto nu, a reprovação implícita por outros, que poderia no mesmo instante, encobrir uma forma jubilosa, ao menos nos caso dos nus masculinos, da representação do Eu.

Pelo desnudamento e pela evocação da vergonha individual, do olhar de outrem e da relação com o grupo, as representações do corpo nu revestiram-se com insistência da noção de um exílio e de uma rejeição temidos. Pela relação íntima com o corpo e, paralelamente, pela relação com o mundo ordenado segundo leis, os nus - sempre banhados de vergonha - levam o selo de proibições e de tabus que atuam segundo uma distinção sexual. Contudo, de início, o nu feminino, assim como o masculino, se oferece sempre em uma fase de segregação, em uma forma de ruptura com a vida coletiva, por vezes simplesmente com o domínio dos ritos privados (o banho), porém, mais particularmente, sob a forma de uma fase articuladora para os homens tornados selvagens e que rejeitam o vestuário.

Revelar o corpo nu, reservado à clausura, à solidão, ao olhar de um círculo restrito, é fonte de embaraço, de vergonha e de fragilidade. Não nos surpreendemos, portanto, de ver aqueles que encontram o homem nu em seu caminho como curadores que favorecem a caminhada na direção do vestuário. O nu masculino significa destruição de uma ordem anterior, oposição mesmo a um estado anterior feito de ordem, uma anarquia cujas marcas são o abandono do vestuário, a destruição da aparência, a abolição das leis do comportamento, desordem gestual e incoerência do psiquismo: o nu masculino é o significante revolucionário, a representação de uma ruptura.

Em compensação, o nu feminino se situa quase sempre na lógica direta de uma lei criada em absoluto, costume de rei ou vontade de imperador: "cumpriremos vossa vontade legítima", admitem as jovens no Roman du comte de Poisiliers, obra literária em que o imperador exige que sejam exibidas aquelas dentre as quais escolherá sua esposa. Além disso, nas narrativas do Cyele de la Gagevre, o nu feminino - cuja privacidade sofre uma invasão ilegítima - está freqüentemente associado a um ganho material (terras, por exemplo).

O único caso de um funcionamento auto-suficiente e feliz da nudez feminina encontra-se em narrativas com aspecto matriarcal, em que a mulher serve de sua nudez como de um chamariz. Se as crianças se apresentam enquanto selvagens que emergem do reino animal progredindo para o mundo da Cultura, os outros nus masculinos são todos oriundos de uma verdadeira regressão em relação aos signos culturais do grupo, um retrocesso que animaliza o homem. Personagens como Bisdravet e Méilon retornam à forma humana depois de um tempo de exclusão, em que conservam sabedoria e memória de homem, e dos traumatizados do amor, dir-se-á por vezes que são muito semelhantes a um lobisomem.

Retornar-se o vestuário é o primeiro gesto de uma gloriosa reintegração no grupo, a fase de transição é uma verdadeira amnésia: perda das marcas sociais da identidade e perda das leis de um comportamento codificado. Assim repelido, por uma desdenhosa donzela que lhe impôs vãs provas, o herói Yvain Joge, do Dit du Lévrier, parte sua espada, rasga suas roupas e se vai, inteiramente desorientado pela floresta. Yvain espreita a caça, come carne crua, deita diretamente na pedra. Durante a anamnésia (isto é, o retorno à memória) aparece então como doma e domesticação. No estado traumatizado, animal, são particularmente acentuadas a agressividade e a ruptura de toda a comunicação. Ao mesmo tempo desaparecem os valores da ética cavalheiresca, proeza, franqueza e vassalagem.

Signo de um verdadeiro movimento de oscilação para o reino animal, é feito um amplo uso do paradigma desgrenhado / peludo: o homem selvagem aparece, assim, a uma só vez, nu e revestido, como se textos narrativos mal deixassem proferir "o homem nu". A pele nova reproduz a função do espaço habitável e da estrutura da sociedade. A aparência civilizada aparece mais tarde como aquilo que, dessa natureza tornada exuberante e mal controlada, será domesticado, aparado e polido. Os ritos de reintegração comportam, com efeito, atos precisos de redução da selvageria, deve necessariamente passar pela expulsão dos elementos nefastos, anulação da loucura.

O sentimento de vergonha que atormenta o herói restituído à consciência vem do fato de que percebe, adivinhando o louco gestual de seu tempo de amnésia, a deturpação grave de um código: devolvido a si mesmo, ele se vê brutamente confrontado com o olhar de outros, cristalizados nos valores coletivos. Quando toma consciência da vida "repulsa e vil" que levou na cidade, a designação do espaço coletivo não ocorre de maneira casual: a incongruência de sua aparência leva o herói a reconstituir um pesadelo, o comportamento caótico sob os olhares da sociedade. Aliás, para avaliar o alcance dessas narrativas na relação com o coletivo, é preciso sublinhar, na reintegração do exilado, a parte ativa do grupo que deve ressaltar, por sua descrição, por seu senso intimista e secreto, que sabe reestabelecer o ausente e merecer seu retorno: deve apresentar-se como um envoltório tranquilizador e protetor.

Nas narrativas de lobisomens, insiste-se, particularmente, no quarto que permite ao monstro, no momento do retorno à aparência humana, não se expor nu ao olhar: o homem cortês aconselha: "levai-o a um quarto a sós, secretamente, a fim de que não sinta vergonha diante da assistência". "Vergonha é ver mulher nua", clama uma das jovens condenadas a se desnudar sob o olhar perscrutador de um imperador com falta de esposa. Como o privado frágil, é sempre suscetível de ser entregue ao olhar do grupo. É no próprio seio do quadro social que a mulher estará nua, o despojamento do vestuário faz dela uma presa que um olhar de homem pode ilegalmente capturar. Contrariamente ao homem nu, ela está sempre ligada à trajetória de um desejo nascente ou confirmado.

O processo de desnudamento pode ser sugerido em termos violentos, como o imperador que ordena diante das trinta jovens: "cada uma ficará nua, tão nua, como quando saiu do ventre de sua mãe", e acrescenta: "é uma ordem, não um pedido." Mas se a mulher entra voluntariamente no jogo do exibicionismo exigido pelo esposo, aceita tornar-se uma das marcas que fundam o poder masculino, como os vassalos que são anualmente obrigados a reconhecer a beleza da rainha. Como o vestuário - enquanto modo de representação do Eu - parecia para o homem a única forma lícita de exibição, a mulher nua aparece aqui em situação substituta. Em compensação, a função do nu masculino parece estreitamente ligada aos ritos da sociabilidade e às marcas de coesão do grupo, submetidas a provas repetitivas: a tendência exibicionista do homem passa por uma total declaração pelo vestuário. À mulher, ao contrário, é atribuída uma situação de vergonha ("ser vista") e lhe está reservado um modo infeliz de exibicionismo, pois a mulher nua parece viver uma socialização mediatizada do corpo na medida em que - ao lado do vestuário que é para o homem o signo da integração do Eu, recuperado pela coletividade - ela não parece senão um signo entre outros.

O processo do nu ao vestido, aparece todo carregado de simbólica coletiva: expulsão e reintegração rituais, são etapas significativas do homem medieval com seu corpo. Em modo menor, a mulher é excluída dessa problemática: posta a nu, admirada, punida, ela serve para fazer nascer o desejo e permanece para o homem um dos trunfos da imensa alegria em si. Em uma era, a partir de então, destinada ao sentimento de vergonha, o pudor, que se exprime claramente por ocasião dos retornos à aparência humana, e é mais explícito ainda entre as mulheres obrigadas a ficar nuas (com exceção da rainha ativa que só procura reunir confirmações de sua beleza).

Mas aquelas, que na torre do imperador devem desnudar-se (submetidas de fato a um teste de virgindade), opõe a ordem cruel, malévola, um processo de despojamento do corpo muito lento e constrangido: tiram seus cintos, rasgam seus laços de seda, abrem o fecho do pescoço - tremem por medo e incômodo. Reflexo do corpo de Adão, mas invertido como que por um espelho, o corpo feminino (mais permeável à corrupção por ser menos fechado) requer uma guarda mais atenta e é ao homem que cabe a sua vigilância.

A mulher não pode viver sem o homem, deve estar sob seu poder. Anatomicamente, ela está destinada a ficar encerrada, submetida em uma cerca suplementar, a permanecer no seio da casa, e só sair dali escoltada, enterrada em um invólucro de vestiário mais opaco. É preciso erguer diante do corpo um muro, o muro "vida privada". Por natureza, ela é obrigada ao retiro, ao pudor, deve preservar-se. Deve sobretudo, ser colocada sob o governo dos homens, desde o nascimento até a morte, porque seu corpo é perigoso, em perigo e fonte de perigo: por ele, o homem perde sua honra, por ele corre o risco de ser desencaminhado, por essa armadilha tanto mais perigosa quanto está mais preparada para seduzir.

O corpo era objeto de uma moral e de uma prática que o historiador tinha dificuldade em descobrir antes do final do século XIII, porque a arte, decididamente realista, e os escritos sobre esse assunto mascaram quase tudo. O princípio era de que é preciso respeitar seu corpo, pois que ele é o templo do espírito e ressuscitará, cuidar dele, mas com prudência, amá-lo ternamente como, segundo São Paulo, os maridos devem ter afeição por sua mulher: guardando a distância, desconfiando, pois o corpo é tentador como o é a mulher, ele leva os outros aos desejos, leva a desejar os outros.

O mais aparente nos textos que nos informam é uma forte tendência a temer seu corpo, e dele libertar-se, levando aos extremos do ascetismo até a abandoná-los aos insetos. A identidade se perde com o aparecimento do traje, o homem social passa a ser um homem vestido. Há malícia em evocar o nu, em primeiro lugar porque o uso da pele é um dos elementos discriminadores de representação social, em seguida, porque o corpo nu, em uma sociedade de ordem, define o extraviado ou o excluído sob o olhar das pessoas vestidas; enfim, porque a nudez confina o natural do homem.

A sociedade passou a se manter de pé, pelo consenso expresso, pela aparência dos indivíduos. A sociedade no fim da Idade Média se desenvolveu economicamente e multiplicou os estatutos. O vestuário se tornou assim uma das marcas essenciais de convivência social, destinando a cada parte do povo, seu papel e seu lugar. A nudez é o sinal de uma regressão em relação à ordem coletiva, de uma ruptura com os círculos da sociabilidade medieval.

Na literatura, a nudez feminina significa luxúria e exibição forçada das prisioneiras cativas entre as quais um imperador de romance escolhe uma mulher. Quanto à nudez masculina, estava associada, nas representações literárias, aos fantasmas da loucura ou da vida selvagem, assim como o menino-lobo. Outras origens se erguem e fazem da nudez uma invenção da cultura cristã: Adão, o glorioso, e Jesus, o suplicado, impõem ao povo fiel o esplendor do corpo virgem e dor do corpo martirizado. No final da Idade Média, na pintura do norte da Europa, a partir do século XV, traz a nudez triunfante de Adão e de Eva e a nudez de Cristo torturado até a morte.

O diálogo entre o homem e sua imagem, tal como refletem os artistas, participa da consciência nova que os homens e as mulheres do fim da Idade Média tiveram seu corpo revelado, sem se iludir sobre o corpo delicioso e pecador, do qual a alma escapará no último suspiro para ir habitar na monotonia do corpo sofredor no purgatório, diante do nu reconciliado no fim da Idade Média, que não se espere conhecer o íntimo. A intimidade é bem o último círculo do privado, mas passa necessariamente pelo corpo oferecido e despojado. A nudez supõem um olhar, um olhar percebido, desde o apelo que ressoou no paraíso nesta etapa, o olhar que os homens e mulheres do final da Idade Média lançaram sobre seu próprio corpo.

Da Renascença à Revolução Francesa

Evidentemente, é sobre o corpo que as normas da civilidade se exercem com maior rigor. Não é ele ao mesmo tempo a base das paixões, uma incansável moralização das condutas ordena que se esqueça o corpo e respeite a presença divina. Ela traça um caminho difícil e cheio de contradições. "Foi o pecado que nos impôs a necessidade de vestir-nos e cobrir de roupa nosso corpo", portanto a vestimenta deve obedecer a uma norma religiosa e moral que em todos os casos associa a nudez ao pecado original.

Em determinados casos essa evolução sobre o corpo e a nudez começou muito antes do século XVIII. A decência específica, exigida na época de início, era que "algumas partes do corpo o pudor natural nos leva a esconder". Depois, a relação com o corpo ficou mais severa: É muito honesto para uma criança pequena manusear suas partes pudentas, mesmo com vergonha e pudor. Mas tudo não passa de uma única teoria: "O julgamento moral está totalmente integrado à experiência corporal". Ainda que se trate aqui de uma função considerada vil e repulsiva, no entanto com relação aos gestos mais cotidianos, progressivamente, se impõe uma distância que, do corpo ao corpo, tende a intercalar o espaço neutro de uma tecnologia que governa a ameaçadora espontaneidade da sensualidade.

Assim como quando se está deitado, não se devia deixar que as cobertas sugerissem a forma do corpo, assim como, "quando sair da cama não se deve deixá-la descoberta, nem colocar a touca de dormir em algum assento ou outro lugar onde outros possam vê-la. A vigilância se tornou tão estreita que acabou proibindo toda relação imediata consigo mesmo: o decoro exige também que, ao nos deitarmos, escondamos de nós mesmos o nosso corpo e evitemos lançar-lhe até os menores olhares". Negação radical de qualquer intimidade.

Às vésperas do Iluminismo, toda uma gama de práticas corporais cai, assim, numa clandestinidade furtiva, vergonhosa. Organiza-se ao redor do corpo uma esfera do silêncio e do segredo. Do privado ao público, do íntimo ao secreto: não forçaremos porém, as linhas de uma evolução extraordinariamente complexa. Se é clara a direção em que os comportamentos mudam entre o século XVI e o começo do XIX, tais transformações se efetuaram em ritmos e segundo cronologias muito variáveis. As funções corporais logo são subtraídas ao campo da civilidade.

Do final da Idade Média a meados do século XVIII, nossos tratados em particular ignoram o corpo, à exclusão do rosto e das mãos, que são as únicas partes expostas. Os cuidados concentram-se no visível, na roupa e, sobretudo, na roupa branca, cujo frescor ostentado na gola e nos punhos constitui sinal autêntico do asseio. Porém, ao mesmo tempo, é inseparável de uma idéia do corpo que rejeita a água como um agente perigoso, suscetível de penetrar por toda parte. A higiene reabilita a intimidade corporal. Enfocada pela medicina e depois levada às escolas, logo se tornará, aliás, o dispositivo inédito de uma forma de controle coletivo dos comportamentos.

Vemos que a socialização das técnicas do corpo, por mais que sejam expressamente reguladas, na verdade, só conseguem impor-se através de registros de representações e de práticas estabelecidas, ao mesmo tempo que ultrapassam o campo específico da civilidade. A roupa foi usada com a função de esconder a superfície do corpo. Mas faz da intimidade corporal o objeto de investimentos autônomos. A história do asseio não é isolada, em todo caso, convida a reconhecer no mundo dos gestos reprovados a outra forma silenciosa de intimidade.

Da Revolução Francesa à Primeira Guerra

Cento e cinqüenta anos depois, a sala de banho é transformada em santuário, fecha-se sobre a nudez dos senhores que já não toleravam ser vistos por seus criados, "madames se vestiam sozinhas e penteavam-se pessoalmente. Ela se tranca em sua toalete e é muito difícil que alguém tenha direito de entrar" (Diário de uma criada de quarto). Mostra-se que essa expulsão foi precedida por uma "relação mais exigente do indivíduo consigo mesmo". Essa exigência de mais intimidade não se manifesta apenas no banheiro, mas, também, no dormitório e em toda a casa. Os ricos, principalmente, viviam sobre as vistas dos criados, comiam, dormiam sob os olhos deles. Acabaram por perderem as intimidades a dois (os casais). E a exigência de recusa aos criados a transformou num intruso, no século XIX.

Em 1830 começa a moda dos retratos, de famílias, de pessoas e parentes passados que morreram ou amigos. Mas esse processo favorece por fim a vulgarização e a contemplação da imagem da nudez. Tende a modificar o equilíbrio dos modos de simulação erótica, a difundir um novo tempo de desejo, testemunha-o prestígio do nu. O legislador percebeu-o bem depressa e, desde 1850, uma lei proíbe a venda de fotos obscenas em vias públicas. Após 1880, a foto pública de amador suprime o intermediário profissional, alivia o ritual da pose, abre de par em par a vida privada para a objetiva, a partir de então ávida de imagens íntimas.

No início do século XIX, é no seio do espaço privado que o indivíduo se prepara para afrontar o olhar dos outros; ali configura-se sua apresentação em função das imagens sociais do corpo. Impõe-se nessa época a elaboração de uma estratégia de aparência, um sistema de comunhões e ritos que visam somente a esfera privada. Assim, ao cabo de décadas, a camisola de dormir deixa aos poucos de ser tolerada fora do quarto. Tornou-se símbolo de uma intimidade erótica e menor alusão a ela. Outro fato histórico renova então as condutas privadas: o inaudito sucesso da lingerie. A extrema sofisticação da vestimenta invisível valoriza a nudez, dando-lhe maior profundidade. Enquanto se multiplicavam os estágios do despir-se (no final do século), a acumulação erótica ainda era um tabu. As mulheres usavam corpetes para manter a silhueta esbelta e acentuar as curvas das ancas e dos seios.

No final do século XIX, o corpo já está mais livre. Os gestos e as posturas são permitidos e o corpo deixa de ser percebido como exterior à pessoa. Os prazeres do corpo nu em meio a fluidez de um banho de mar já não é tão julgado.

Da Primeira Guerra aos dias atuais

A rebelião do corpo certamente constitui um dos aspectos mais importantes da vida. Com efeito, ela modifica a relação do indivíduo consigo mesmo e com os outros. A novidade no final do século XX são as atividades físicas: surgiram para o culto ao corpo, pela aparência, bem-estar e realização. "Sentir-se bem na própria pele" se torna um ideal

O espelho surge (e não é uma invenção novecentista, mas sua banalização e a forma de usá-lo são próprias desse século): a pessoa não se olha mais no espelho com o olhar de outro, ela se olha de uma maneira que, de modo geral, ninguém está autorizado a fazer: sem maquilagem, sem roupa, totalmente nua. Assim, as manifestações narcisistas do banheiro são percorridas por sonhos e lembranças. Cuidar do corpo é prepará-lo para ser mostrado.

A roupa se torna funcional, prática e confortável, mesmo contra os costumes, passa a valorizar o corpo e deixar adivinhar suas formas, realçando-as e, por vezes, revelando-as. Exibe o bronzeado, a pele lisa e firme, a flexibilidade. Aliás, mostra-se cada vez mais o corpo: cada etapa desse desnudamento parcial começa provocando certo escândalo, depois se difunde rapidamente e acaba se impondo, pelo menos entre os jovens, aumentando a distância entre gerações. É o caso da mini-saia nos meados dos anos 60 ou 70, depois do mono-biquíni nas praias, mostrar os seios e as coxas deixa de ser indecente. Nas cidades, durante o verão, vêem-se homens de bermuda, camisa aberta, mostrando o tronco nu. O corpo não é apenas assumido e reabilitado: é reivindicado e exposto à visão de todos.

Para as normas do entre guerras, o avanço do nu é o avanço da indecência, no mínimo da provocação. Para a nova norma, é o contrário, uma coisa muito natural, uma nova maneira de habitar o próprio corpo. Prova disso é o fato que o nu avança não só nos lugares públicos, mas, também, no universo doméstico. As famílias no verão sentam a mesa em trajes de banho. Os pais vão e voltam do banheiro para o quarto nus, sem se esconder dos filhos. É difícil saber até que ponto essas práticas prevalecem, o que certamente depende dos meios e das gerações. Mas sua mera possibilidade mostra que não se trata de depravação, e sim de uma mudança de normas.

De fato, o corpo se tornou o lugar da identidade pessoal. Sentir vergonha do próprio corpo é sentir vergonha de si mesmo.

Fontes de pesquisa:

Veyne Paul. História da vida privada: do Império Romano ao ano Mil. Companhia das letras, 1990, 14ª edição.

Duby, Georges. História da vida privada: da Europa Feudal à Renascença. Companhia das letras, 1990, 10ª edição.

Aries, Philippe, & Charier, Roger. História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes. Companhia das letras, 1991, 8ª edição.

Duby, Georges, & Aries, Philippe. História da vida privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Companhia das letras, 1995, 1ª edição.

Prost, Antoine, & Vincent, Gerard. História da vida privada: da Primeira Guerra aos dias atuais. Companhia das letras, 1995, 1ª edição.

© Revista Eletrônica de Ciências - Número 21 - Agosto / Setembro de 2003.

Henrique Ferraz
Estudante de Arquitetura e Urbanismo da EESC-USP - Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo
e-mail: henriqueferraz_arqurb@yahoo.com.br 


Nadime L'Apiccirella
Estudante de Psicologia da UFSCar - Universidade Federal de São Carlos.
e-mail: nadilapi@bol.com.br


Olho nu - Copyright© 2000 / 2011
Todos os direitos reservados.