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CHOVIA...

por Paulo Pereira*

Chovia... Havia algo de incomum, de gostosamente estranho, na vida da grande cidade aflita. Tudo parecia refletir uma doce ansiedade, talvez um certo ar de boa preguiça, ou uma alegria passageira.

O fato é que o tropicalíssimo carioca morria de frio!... Rondava pelos cantos o cinzento fantasma de inverno. Chovia... A garota belíssima, acostumada à mini-tanga de Ipanema e à nudez de Cabo Frio, escovava, meio sem jeito, os já esquecidos agasalhos dos anos passados, para sair à rua elegantemente encapotada, deliciosamente arrepiada.

Chovia... O rapaz solitário, triste e excitado, sussurrava ao telefone para a namoradinha distante: -“Amor, aqui no Rio está fazendo um frio dos diabos! Vem passar o fim-de-semana comigo, vem!...” Na verdade, os menos avisados, certamente perplexos, eram surpreendidos por supostas alucinações: a paisagem era verdadeiramente européia! A cada passo, esbarrava-se com um friorento velhinho parisiense nas ruas do Grajaú, com uma solene “lady” londrina nas praças da Gávea, com coloridas bruxas russas pelas esquinas de Copacabana, ou com louríssimas crianças suecas nas calçadas da Barra...

Chovia... As gotas d’água, geladas, bailavam nos galhos dos arvoredos, enquanto os pneus dos inflacionados carros zumbiam no asfalto molhado, reluzente, escorregadio. Reinava um pleno silêncio, meio cúmplice, meio deprimente. Depois de um dia cinzento, carregado de penumbras, a noite transcorria vestida de negro, incomparavelmente escura e plena de mistérios. No banco úmido da pracinha esquecida, a preta velha cochilava, com as vestes humildes salpicadas de lama, sem saber o próprio nome, um tanto indiferente ao seu próprio drama, sem querer incomodar com sua miséria. Ao lado da velha, jazia, na pedra fria, um roto saco de pano, vazio, amarrotado, mudo, cansado das esmolas da gente hipócrita e puritana.

Chovia... Na rua deserta, encostado à porta de um botequim, um bêbado cantava, chorava e ria... E a mulata faceira, toda curvas, cheia de dengo, chegava num carro esportivo importado, e dizia adeus ao homem, que estava ao volante, num beijo sugado, sem fim.

A madrugada, cheia de angústia e gozo, começava a lutar contra a claridade tímida, incipiente, que se anunciava no horizonte. Havia um especial odor e encanto na terra encharcada, nas pequenas poças d’água, nas sombras adormecidas... Um novo dia nascia, reservado, encolhido, reticente. O bêbado, aos tropeções, já procurava o fatídico caminho de casa. Chegavam, aos poucos, o padeiro, o jornaleiro, o ônibus suburbano. A jambete gostosa, passos indecisos, roupinhas bem justas, entrava no prédio antigo, sonolento. E, depois de despir-se por inteiro, atirando, com certo ar de desprezo, as peças de roupa pelos cantos do quarto silencioso, dormia, enfim, em paz, nua, escultura viva, enroladinha nas cobertas macias; e tinha a boquinha entreaberta, pedindo mais beijos...

Uma brisa amena, envolvente, sacudia os ramos das árvores quase sem folhas. Os pequenos pássaros, irrequietos, abrigavam-se nas moitas dos jardins e nas abas dos telhados, piando baixinho, contando, por certo, estórias de sonhos. Chovia...
 

*Escritor, biólogo, estudioso do naturismo.

indiangy99@yahoo.co.uk
 

Jornal Olho nu - edição N°64 - janeiro de 2006 - Ano VI


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